O globo, n. 31972, 18/02/2021. Mundo, p. 18

 

Recontagem suspensa

Marina Gonçalves

18/02/2021

 

 

Orgão eleitoral adia revisão de votos no Equador, e indígenas se mobilizam

A decisão do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) do Equador de não aprovar, na noite de anteontem, a recontagem dos votos do primeiro turno das eleições presidenciais de 7 de fevereiro volta a jogar o processo eleitoral do país na incerteza. A recontagem havia sido reivindicada pelo candidato e líder indígena Yaku Pérez, que alega que houve fraude para impedi-lo de ir ao segundo turno, e a suspensão do processo abre espaço para a mobilização de seus apoiadores, que já haviam iniciado uma marcha até Quito.

O processo de recontagem havia sido acordado na semana passada entre Pérez e o segundo colocado, o candidato da centro-direita Guillermo Lasso. Ambos concordaram em reapurar 50% dos votos em 16 das 24 províncias equatorianas, além de rever todas as cédulas da província de Guayas, onde fica Guayaquil.

Lasso e Pérez, separados por uma diferença de cerca de 30 mil votos, disputam a vaga no segundo turno contra Andrés Arauz, economista de esquerda aliado do ex-presidente Rafael Correa, vencedor do primeiro turno. Na apuração dos votos, Pérez chegou a estar à frente de Lasso, que assumiu a dianteira no final.

Na reunião entre os dois candidatos, que contou também com a participação de representantes da Organização dos Estados Americanos (OEA), ficou decidido que a recontagem seria transmitida ao vivo pelos canais oficiais do CNE. No total, 45% dos votos deveriam ser recontados, ou cerca de 6 milhões, num processo custoso e demorado que poderia levar semanas.

A não aprovação do relatório que recomendava a recontagem evidenciou as divergências entre os membros do CNE. Diana Atamaint, a presidente do órgão, e a conselheira Esthela Acero votaram a favor da aprovação do documento; o relator, José Cabrera, foi contra; o vice-presidente, Enrique Pita, se absteve; e o quarto conselheiro, Luis Verdesoto, deixou a reunião sem se pronunciar.

“Este plenário do Conselho Nacional Eleitoral, infelizmente, não aprova ou rejeita o relatório apresentado pela área técnica sobre o pedido de recontagem”, anunciou Atamaint.

Pérez pediu que a contagem dos votos não tivesse prosseguimento e anunciou recurso contra a decisão do CNE e em organismos internacionais. O órgão eleitoral afirmou que levará mais uns três dias para divulgar os resultados oficiais.

María Villarreal, professora do Programa de Pósgraduação em Ciência Política da UniRio, explicou que o documento examinado pelo CNE “reflete apenas parcialmente o que foi consensuado durante o encontro com os candidatos”, o que teria causado a divisão dentro do órgão eleitoral.

— Além disso, há teorias de uma suposta parcialidade dentro do CNE, por parte de pessoas como a própria presidente, que tem vínculos com o Pachakutik [legenda de Pérez], e Pita, vinculado ao Partido Social Cristão (PSC) e ao Creo, de Lasso. Tudo isso cria mais desconfiança dos cidadãos e mais dúvidas a respeito do CNE —afirma a especialista equatoriana.

Entre juristas equatorianos, também não há um consenso sobre a necessidade de se realizar uma revisão tão profunda dos votos —alguns temem que o processo de recontagem poderia abrir precedentes perigosos, além de ter um alto custo operacional. O processo poderia ainda trazer consequências para a campanha e até na data de celebração do segundo turno, previsto para 11 de abril.

— O CNE conta com um conselho formado corporativamente, com interesse de partidos e movimentos políticos. Isso causa desordem —concorda o sociólogo e cientista político equatoriano Milton Reyes.

— E essa desordem também é funcional porque o debate para o segundo turno fica em segundo plano, o que pode prejudicar Arauz. Se não houver um debate mais amplo, tudo ficará concentrado no voto contra o correísmo e em temas periféricos como corrupção. Os temas mais urgentes do país, como economia, segurança, e inclusive o debate sobre pandemia, ficam congelados.

OEA PEDE TRANSPARÊNCIA

A OEA, por sua vez, disse ontem estar “preocupada” com a recontagem e exortou o CNE a “garantir rigor e transparência para todas as forças políticas envolvidas no processo eleitoral” e também o respeito ao calendário eleitoral.

Além de todas as questões citadas, analistas alertam ainda para um risco de amplas mobilizações no país e até do enfrentamento físico entre os vários atores envolvidos. No domingo, indígenas iniciaram uma marcha até Quito denunciando fraudes. Ontem, Pérez, cujo partido, o Pachakutik, é o braço político da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), destacou o desprestígio do órgão eleitoral.

—Há uma enorme legitimidade de nosso movimento e um enorme desprestígio do CNE. Se uma pesquisa for realizada para saber se houve fraude, tenho certeza que a imensa maioria dos equatorianos concordaria — afirmou ele. — O CNE e seus portavozes respondem aos mesmos amos de sempre, que não representam os equatorianos e seu povo. Nossa candidatura coloca em jogo interesses gigantes.

Caos deixa campanha em segundo plano, o que pode prejudicar candidato de Correa