Título: Respeitáveis assassinos
Autor: Dalmo Dallari
Fonte: Jornal do Brasil, 26/02/2005, Outras Opiniões, p. A11
O assassinato de Irmã Dorothy não tem justificativa ética ou jurídica e não comporta manifestações de solidariedade para com os assassinos, diretos ou indiretos
Os que pagaram alguns jagunços para assassinar a Irmã Dorothy são pessoas que têm dinheiro, que têm interesses econômicos ligados à terra e aos produtos da terra no Estado do Pará e que, além disso, contam com a proteção de autoridades e de um esquema de acobertamento e de manipulação da opinião pública para garantia de sua impunidade. Não é preciso ter muita argúcia nem aguardar rigorosa investigação para saber que tudo isso é verdade, pois tem sido essa, há muito tempo, a prática reiterada, que só não muda porque os oligarcas que dominam a região e que controlam grande parte dos poderes públicos dependem desse estado de coisas para manutenção de seu poder. Reconhecer que, mais uma vez, essa societas celeris produziu um assassinato não é fazer um pré-julgamento, mas, tão só, a constatação de que a realidade não mudou. E se alguém quiser a lógica do crime basta relembrar a velha indagação: ''a quem aproveita esse crime ?'', quem teria interesse em que ele fosse cometido ? Essas considerações mais do que óbvias são oportunas porque já estão aparecendo na imprensa, onde conseguem bom espaço, os manipuladores da opinião pública, posando de críticos neutros e de respeitáveis especialistas. Por isso é necessário que as pessoas de boa fé e com pouca informação sejam alertadas, mas é preciso também alertar os que, apesar de bem informados, temem a criação de uma imagem negativa para toda uma categoria social. Assim, a apresentação dos invasores de terras públicas, dos arrasadores de florestas, dos escravizadores de trabalhadores, dos violentadores de meninas pobres e de índias, como sendo ''fazendeiros'' e ''empresários'', criadores de empregos indiretos (o jagunço contratado por eles vai ter dinheiro para comprar roupas e assim haveria mais empregos na indústria de roupas), gera uma capa de proteção altamente conveniente e de muita eficiência, pois lhes dá a proteção da grande imprensa e gera indignação contra as autoridades que se dispuserem a investigar todos os fatos e promover as responsabilidades nos termos da lei. A Polícia, o Ministério Público e a Magistratura são colocados sob suspeita, como sendo parciais, politicamente motivados ou em busca da luz dos holofotes da publicidade.
O assassinato de Irmã Dorothy não tem qualquer justificativa ética ou jurídica e não comporta manifestações de solidariedade para com os assassinos, diretos ou indiretos. Evidentemente, não se há de pretender qualquer ação arbitrária, à margem da lei, para punição dos responsáveis. Havendo razoável fundamento para as suspeitas deve ser feito um cuidadoso inquérito, investigando-se a participação de pobres e ricos, de matadores profissionais e de contratantes de assassinos. O inquérito deverá, desde o início, ser acompanhado pelo Ministério Público, decretando-se a prisão preventiva daqueles cujo envolvimento apresentar indícios significativos, pois é mais do que óbvio que em casos como esse os responsáveis tentarão fugir se começarem a ser desmascarados, como também tentarão intimidar ou corrromper testemunhas e autoridades. No caso dos suspeitos ricos, deverão ser também determinados judicialmente o bloqueio de suas contas bancárias e a quebra do sigilo de suas comunicações, pois são pessoas sem qualquer escrúpulo e com grande poder de corrupção, sendo indispensável, por isso, o uso de todos os meios legais para que recebam a punição justa.
A brutalidade do assassinato de Irmã Dorothy, enquanto pessoa solidária e inteiramente dedicada à promoção da dignidade humana, já deveria ser motivo suficiente para que ninguém ficasse indiferente e todos exigissem a punição dos responsáveis. Mas, a par disso, esse crime, pelas circunstâncias que o envolvem, corrompe a imagem do povo brasileiro, que não se sustenta pelo crescimento do produto nacional bruto ou pelos índices de desenvolvimento econômico quando um fato tão escandaloso comprova que tudo isso não vem contribuindo para o crescimento do índice de desenvolvimento humano e para o estabelecimento de relações humanas civilizadas.