O globo, n. 31979, 25/02/2021. País, p. 6

 

Rachadinha: MP fez 27 buscas após quebra de sigilo

João Paulo Saconi

25/02/2021

 

 

Acesso a dados bancários de Flávio Bolsonaro e Queiroz, anulado pelo STJ, embasou descoberta de provas e foi decisivo no caso

Anulada anteontem por decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a quebra de sigilo fiscal e bancário do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e de outras 100 pessoas e empresas precedeu ao menos 27 ações de busca e apreensão feitas pelo Ministério Público do Rio (MP-RJ) durante o caso. Isso permitiu a coleta de provas que embasaram a denúncia apresentada à Justiça em novembro contra o filho do presidente Jair Bolsonaro e outras 16 pessoas pelos crimes de organização criminosa, lavagem de dinheiro, peculato e apropriação indébita pelo esquema de devolução de salários operado no gabinete de Flávio na Alerj. O acesso aos dados também foi decisivo para que os promotores chegassem a conclusões importantes no caso.

Por quatro votos a um, os ministros da Quinta Turma anularam duas decisões do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio, que permitiram aos promotores o acessoa movimentações bancárias dos investigados, bem como declarações de bens e outros ativos financeiros. Os magistrados entenderam que faltou fundamentação às decisões. A primeira, proferida em 24 de abril de 2019, tinha cer cade 85 alvos e uma justificativa sucinta por par tedo juiz. A segunda, de 14 de junho daquele ano, estendia a quebra para mais oito ex-funcionários de Flávio e, após as críticas dos advogados do senador, continha justificativa mais aprofundada para embasar a autorização.

A partir da quebra de sigilo, agora anulada, o MP reuniu provas que fundamentaram os pedidos de prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar de Flávio acusado de operar a “rachadinha”, e de Márcia de Oliveira Aguiar, mulher do auxiliar. Além das duas ordens de prisão, pelo menos 27 mandados de busca foram autorizados por Itabaiana após a quebra de sigilo, a maior parte deles contra exfuncionários do gabinete.

Em 18 de dezembro de 2019, por exemplo, o MP cumpriu 24 mandados em endereços ligados a Queiroz e sua família e a Ana Cristina Valle, ex madrasta de Flávio que trabalhou no gabinete, enove parentes dela. Todos o salvos tiveram sigilo quebrado oito meses antes apedido do MP.

No ano passado, em 18 de junho, a deflagração da“Operação Anjo ”, que levou Queiroz e Márcia à prisão, também esteve relacionada aos dados descobertos na quebra de sigilo. O próprio MP fez referência à diligência no pedido de prisão.

Ao listar os crimes que teriam sido cometidos pelos investigados, a promotoria justifica que a identificação dos ilícitos foi possível“diante das diligências realizadas, principalmente pelas transações imobiliárias registradas em cartórios, e pelos dados encaminhados pelas instituições financeiras em razão do afastamento do sigilo bancário (...)”.

Além de recorrer da decisão do STJ, o MP-RJ pode refazer o pedido de quebra de sigilo dos investigados e tentar recuperar terreno perdido na investigação iniciada em 2018. A prescrição dos crimes varia de oito anos (apropriação indébita) a 16 anos (lavagem de dinheiro e peculato). No caso desses últimos dois ilícitos, a prescrição seria em dezembro de 2034.

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Pressão política sobre MP-RJ antecedeu desarticulação

25/02/2021

 

 

Alvo de críticas do presidente Jair Bolsonaro em diversas ocasiões ao longo do caso das “rachadinhas”, o Ministério Público do Rio (MP-RJ), sob novo comando desde janeiro, vive um momento de desarticulação em diferentes frentes de investigação envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). A ofensiva presidencial chegou ao ápice no último dia de 2020: durante uma transmissão ao vivo, Bolsonaro questionou o que o MP-RJ faria se o filho de um promotor fosse acusado de tráfico —o presidente disse que falava em hipótese, mas a afirmação, sem contexto, foi tratada internamente no órgão como mais uma tenta- tiva de pressão. Naquele mesmo mês, em reunião no Palácio Guanabara, o novo procurador-geral de Justiça, Luciano Mattos, ouviu do governador Cláudio Castro queixas sobre o que conside- rava “excessos” do Ministé- rio Público com a classe política.

O encontro, revelado pela revista “Época”, não foi o primeiro em que o tema foi tratado: também no ano passado, o ex-procurador-geral de Justiça Marfan Vieira se reuniu com Bolsonaro —a preocupação presidencial com possíveis ações “espetaculosas” contra Flávio, como bloqueio de bens, foi um dosassuntos.

Internamente, a estrutura responsável pelo caso das “rachadinhas” perdeu força: o Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção (Gaecc) tinha 22 integrantes, mas hoje tem só um. Mattos decidiu também trazer para o próprio gabinete a atribuição final sobre demandas judiciais do Gaecc e de outros grupos especializados do MP-RJ. Se antes, por exemplo, as equipes responsáveis pelas investigações podiam oferecer denúncias e pedir prisões, agora dependem da assinatura do procurador-geral de Justiça. No caso específico do senador, uma denúncia já foi apresentada, mas há outros possíveis crimes em apuração.

Uma outra frente de apuração, esta sobre supostas irregularidades em declarações de bens entregues por Flávio à Justiça Eleitoral, também vem esbarrando em questões administrativas internas. A promotora Taciana Dantas Carpilovsky, que havia sido designada para comandar o inquérito —em substituição a um promotor que, em 2020, pediu o arquivamento, ato posteriormente desfeito em instância superior —, passou a compor a cúpula da administração de Mattos. O espaço aberto com a saída dela ainda não foi preenchido. Antes de deixar a função, a promotora havia pedido novas diligências à Polícia Federal.