Título: Crise será o grande teste para Lula
Autor: Dantas, Cláudia
Fonte: Jornal do Brasil, 30/11/2008, Economia, p. E1

O ano de 2009 será nebuloso para o Brasil?

Em um quadro de desaceleração da atividade econômica, o primeiro trimestre de 2009 será bastante complexo, pois reúne três eventos de forma simultânea. O primeiro decorre justamente da desaceleração da economia por causa da decisão política de manter elevada a taxa de juros ao longo de 2008. O segundo evento é o efeito da sazonalidade. A economia entra em um ritmo mais lento, de pouca atividade na agricultura. O terceiro evento é a manifestação de uma crise mais ampla, e temo que poderemos ter uma variação do PIB próxima de zero, se não negativa. Portanto, a elevação da taxa de juros, nesse momento, contribui para comprometer a atividade econômica. Por outro lado, é necessário ter uma postura anti-cíclica, especialmente porque se olharmos a atividade econômica, três grandes atores importantes serão afetados.

Quem são eles?

Os setores privado e público, além das famílias. As empresas reduzirão o volume de investimentos, as famílias conterão mais o consumo, então só restará ao setor público atuar de forma autônoma. Isso implicaria em uma ação mais precisa no âmbito das políticas públicas e seria fundamental mudar a composição do gasto brasileiro. Desperdiçamos muito com juros, um gasto improdutivo. O Brasil compromete 7% do seu produto com gasto de juros. Uma redução da taxa de juros permitiria comprometer menos recursos públicos com o pagamento de juros e, evidentemente, isso poderia ser repassado a áreas fundamentais para manter o nível de atividade e para proteger o emprego e a produção nacional.

Como o senhor enxerga o futuro do trabalhador brasileiro que ascendeu socialmente nos últimos anos? Há perigo de retrocedermos, já que empresas brasileiras falam em recessão e demissões?

Historicamente, o Brasil tem se posicionado relativamente bem em momentos graves equivalentes aos de hoje. Em 1929, por exemplo, dada a gravidade da crise, houve uma intervenção política que se traduziu a partir da Revolução de 30 de construir um outro Brasil, urbano, industrial. Nesse contexto, a crise de 73 também, ainda sob o regime militar, trouxe rumos importantes. Decisões de maior expressão como a implementação do segundo plano nacional de desenvolvimento, grandes projetos de expansão econômica, introdução do Pis/Pasep, importante para concretizar o 14º salário à parcela dos trabalhadores, entre outros. Decisões importantes para culminar o econômico com o social que, de certa maneira, estão associadas à crise.

Então a crise é um grande teste para o governo Lula?

Sim. É fundamental que haja uma manifestação política de forma mais encorpada, de partidos e de movimentos sociais. Até o momento, há apenas uma tensão dos empresários da indústria automobilística, da agricultura, da construção civil, insatisfeitos com a política conduzida pelo governo.

Afinal, qual é o patamar ideal para o dólar?

Valorização do dólar é uma situação paradoxal. De um lado, o centro da crise se dá nos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, apesar da debilidade da economia, a sua moeda é fortalecida por essa valorização junto com outras moedas. É estranho, porque o certo seria verificar que, com o enfraquecimento da economia, teríamos o enfraquecimento da moeda e acontece exatamente o contrário no Brasil e em outros países. Mas a elevação da taxa cambial é também uma oportunidade para o Brasil considerar a possibilidade de beneficiar as empresas que dependem de insumos importados.

De que forma?

No setor agrícola, convivemos com uma dependência externa demasiada. Isto poderia ser objeto de uma política mais agressiva para que o setor produtivo nacional privado pudesse operar no sentido de reduzir a dependência externa. Ao mesmo tempo, a questão cambial torna o exportador brasileiro mais competitivo pelo efeito da valorização da moeda e o obriga a ser mais criativo.

Os países do G-20 se reuniram recentemente para definir um novo mecanismo de regulação. Qual é sua avaliação a respeito?

Uma das razões da crise financeira está relacionada ao movimento de desregulamentação do setor, basicamente nos anos 80 e 90. Mas não me parece que a crise vá se resolver com mais regulação. É um avanço ter um grupo envolvido no tema, mas vivemos uma crise estrutural. Se olharmos em um período mais longo, o ciclo de expansão do pós-guerra aconteceu por meio da oferta de crédito, conduzida pelos bancos de investimentos. Depois, nos anos 70, o crédito passou a ser financiado pelos ativos dos bancos de investimentos vinculados aos bancos comerciais, que, juntos, realizavam uma série de operações de títulos, e agências classificadoras de risco validavam as operações. Tal modelo mostrou-se insustentável agora e, portanto, não se sabe que mecanismo financiará a expansão e o desenvolvimento econômico do mundo nas próximas gerações.

Como será a nova ordem mundial?

A grande questão é descobrir qual será a base de expansão do desenvolvimento. Continuará sendo o ciclo de consumo de bens duráveis? Apenas 20% da população no mundo tiveram acesso à expansão da economia sustentada em bens duráveis. Se vamos seguir no padrão universal de consumo dos países ricos, então aprofundaremos o desequilíbrio ambiental. No entanto, cresce no mundo uma consciência em torno da insustentabilidade desse padrão. Mesmo que se defina um novo modelo de regulação financeira, mesmo que se consolide um novo padrão de financiamento do desenvolvimento, é preciso entrar em campo o elemento político. A superação da crise econômica dependerá de decisões políticas.

Qual é o tamanho dessa crise?

As informações que se têm não são as mais precisas e reais, porque uma parte desses títulos não é registrada. Se a gente somar o PIB do mundo, segundo o FMI, é inferior a US$ 60 trilhões, e as operações do sistema financeiro superam US$ 600 trilhões. Há um enorme descolamento entre a economia real e a imaterial do resultado dessas operações. Os detentores de riqueza simplesmente aceitarão esse prejuízo? São decisões políticas muito importantes. Não se pode permitir um sofrimento humano muito grande, com a quebradeira de bancos, montadoras. São muitos os interesses em jogo. Ao mesmo tempo em que a crise de 29 representou basicamente o fim de uma transição que começou no século XIX, com o ciclo do capitalismo na Inglaterra ¿ e depois veio a soberania dos Estados Unidos ¿ agora a Ásia aparece como um continente forte. Será que a China ou a Índia também terão capacidade para sustentar o crescimento do mundo?

Que bloco econômico sairá mais fortalecido?

No meu modo de ver, os blocos econômicos hoje têm um papel muito limitado. O sistema das Nações Unidas, do Banco Mundial, do FMI foi criado no momento em que os países eram maiores que as empresas. Hoje, vivemos uma situação inédita, exatamente contrária. As três maiores corporações do mundo têm um faturamento equivalente ao PIB do Brasil, que é considerado a 10ª maior economia do mundo. O Brasil tem uma empresa que supera o PIB da Argentina. Há um desequilíbrio do poder econômico do mundo capitaneado pelo poder das especulações mundiais. Sem governança, essa crise nos levará a uma maior concentração do poder econômico. Isso já ocorria, mas agora se intensifica. E as grandes corporações são portadoras do padrão de consumo do século XX. Essa é uma reflexão importante.

Então o Ipea tem passado a discutir tais questões?

Sim, estamos imbuídos de pensar a continuidade, diferentemente do contexto político dos anos 60. É necessário ter alguma participação que envolva a inteligência nacional e o futuro da sociedade. O Ipea não está mais concentrado no Rio e em Brasília. Abrimos duas representações, uma na Região Norte e outra no Nordeste, para diversificar o conhecimento e fragmentar a informação. Com a perspectiva de conectar os diferentes "brasis", e pensar a inteligência nacional.