Correio Baziliense, n.21113 , 15/03/2021. Mundo, p.10

 

Uma década de horror

15/03/2021

 

 

ORIENTE MÉDIO » Iniciada na onda da Primavera Árabe, que derrubou governos na região, a guerra na Síria é uma tragédia humanitária colossal , com 400 mil mortes e milhões de deslocados. Passados 10 anos, Al-Assad permanece no poder e se prepara para nova reeleição

Centenas de milhares de mortes, destruição generalizada, miséria e um êxodo populacional gigantesco, que atingiu metade da população do país. Enfim, uma tragédia humanitária de proporções colossais. Ao completar 10 anos, a guerra na Síria se confirma como um dos conflitos mais terríveis do começo deste século. Nos últimos tempos, os combates diminuíram de intensidade, mas as feridas continuam abertas e não se vê no horizonte a possibilidade da volta à paz.

Iniciada na esteira da Primavera Árabe, que sepultou ditaduras no poder há várias décadas, o conflito sírio, no primeiro instante, parecia que ia fazer o regime de Bashar al-Assad também desmoronar. Mas, de lá para cá, o ditador, de 55 anos, continua no poder, contra tudo e todos.

Às custas da guerra e de uma tutela estrangeira, Assad completou completou 21 anos à frente de um país em ruínas, exercendo uma soberania limitada em um território fragmentado por potências internacionais, sem qualquer perspectiva de reconstrução ou reconciliação. E avança para uma nova eleição presidencial praticamente ganha diante de uma oposição em frangalhos, debilitada pelas lutas internas e no exílio.

"Pedíamos a liberdade e a democracia em Tunísia, Egito e Líbia, mas nossos slogans eram (de fato) para a Síria", conta o militante Mazen Darwiche, de 47 anos, de seu exílio, em Paris. "Estávamos cegos pela ideia de acender esse pavio que faria chegar a nossa vez. Quem seria o Buazizi sírio?", lembrou, em alusão ao jovem vendedor ambulante que ateou fogo ao próprio corpo e desatou a revolta tunisiana.

Estopim

Na Síria, foi um grupo de jovens em Daraa que deu o pontapé no confronto, com uma mensagem pintado no muro de uma escola: "A sua vez chegou, doutor". Era um recado a Al-Assad, oftalmologista de formação, a quem desejavam um destino similar ao do ditador tunisiano Abidin Ben Ali, forçado a se exilar, ou ao do líbio Muammar Kadhafi, linchado pelos rebeldes.

Foi a senha para a repressão do regime. A partir de então, jovens sírios foram detidos e torturados, provocando indignação e incentivando protestos maciços. Em 15 de março de 2011, a mobilização se espalhou por todo o país com manifestações simultâneas.

O preço pago pelos sírios, porém, tem sido mais do que alto, exorbitante. Em uma década, cerca de 400 mil pessoas morreram, segundo o Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH), com sede no Reino Unido, que realiza um incansável trabalho de documentação. A maioria das 117 mil vítimas civis morreu nas mãos do regime.

O grau violento da repressão surpreendeu, inclusive, os opositores mais obstinados. "Nunca pensei que alcançaria tamanho nível de violência", admite Darwiche, detido em 2012, preso por mais de três anos e torturado. "Mas me enganei", completou.

De acordo com levantamentos, metade da população de antes da guerra — 22 milhões de habitantes — fugiu do país, no maior deslocamento provocado por um conflito deste a Segunda Guerra Mundial. Parte desses sírios vive em acampamentos miseráveis em seu próprio país. Outros, mais de 5 milhões, optaram pelo exílio, expondo-se aos riscos da travessia do Mediterrâneo. Dirigindo-se às portas da Europa, que resiste a recebê-los, os refugiados influenciam o debate político em vários países.

Alheio às sucessivas condenações internacionais, o regime de Al-Assad recorreu a armas químicas para aniquilar os bolsões de resistência, a barris de explosivos atirados do ar em bairros residenciais e a táticas medievais de sítio para matar de fome os redutos rebeldes.

Sequer hospitais ou escolas foram poupados dos bombardeios aéreos. Bairros inteiros de Aleppo, antigo centro econômico e industrial do país, foram arrasados. Assim como sua cidade antiga e seus históricos souks (mercados árabes), classificados no patrimônio mundial da Unesco.

Extremismo

O caos permitiu a expansão fulgurante de uma das organizações mais sanguinárias da história do jihadismo moderno, o grupo Estado Islâmico, que proclamou em 2014 um califado em terras conquistadas entre a Síria e o Iraque.

A violência desenfreada do EI e sua capacidade de atrair combatentes da Europa incitaram o medo nos ocidentais, que deixaram de lado o entusiasmo prudente que o levante sírio tinha provocado. A atenção internacional se voltou para a luta antijihadista, em detrimento dos rebeldes que combatiam as forças de Assad. "Éramos muito inocentes quando começamos a renovação", admite Darwiche, um dos fundadores dos comitês de coordenação, criados para sustentar a revolta.

No pior momento, o regime só controlava um quinto do território e os rebeldes estavam às portas de Damasco, seu reduto. A intervenção do Irã e do Hezbollah libanês, e sobretudo do exército russo depois ao lado de Assad, mudou completamente o jogo. Atualmente, o regime controla cerca de dois terços do território, que abrange as principais metrópoles. Mas enormes regiões ainda estão fora do seu controle. Este mês começou a vigorar uma trégua com o regime, respeitada globalmente.

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Papa pede o fim da guerra na Síria

15/03/2021

 

 

O papa Francisco pediu, ontem, para que "baixem as armas" na Síria. De acordo com o pontífice, chegou o momento de promover a reconstrução social.

Após a tradicional oração do Angelus na praça de São Pedro, Francisco renovou o apelo às partes em conflito para que deem exemplos de boa vontade, com o objetivo de abrir um raio de esperança para o que ele definiu como uma população exausta. "Espero também um compromisso construtivo, decisivo e renovado de solidariedade por parte da comunidade internacional para que, uma vez depostas as armas, seja possível reconstruir o tecido social e iniciar a reconstrução e a recuperação econômica", acrescentou.

O pontífice lamentou que os dez anos de um sangrento conflito na Síria geraram um dos maiores desastres humanitários dos nossos tempos: um número indeterminado de mortos e feridos, milhões de refugiados, milhares de desaparecidos, destruição, violência de todo tipo, sofrimento desumano para toda a população, principalmente para os mais vulneráveis como as crianças, as mulheres e os idosos.

Mesmo após visita histórica ao Iraque, o papa não planeja ir à Síria, mas pede frequentemente um cessar-fogo neste país "martirizado".