Correio Baziliense, n.21114 , 16/03/2021. Política, p.3

 

Recusa em nome da ciência

Vicente Nunes

Israel Medeiros

Rosana Hessel

16/03/2021

 

 

PODER » A cardiologista Ludhmila Hajjar, que rejeitou convite para assumir o Ministério da Saúde, alega falta de "convergência técnica" com Bolsonaro e diz que sua atuação seria científica. Médica relata ameaças de morte e ataques nas redes sociais

A cardiologista Ludhmila Hajjar justificou a falta de "convergência técnica" com o presidente Jair Bolsonaro para recusar o convite ao cargo de ministra da Saúde, no lugar do general Eduardo Pazuello. Ela havia relacionado uma série de condições para comandar a pasta, como ter autonomia na montagem da equipe e liberdade para tocar as políticas de combate à covid-19.

Ludhmila disse não a Bolsonaro na manhã de ontem, em reunião no Palácio do Planalto. Ela e o presidente já tinham conversado no domingo, por quase três horas. A médica é defensora da vacinação em massa e de medidas restritivas para conter a disseminação do novo coronavírus, ao contrário do chefe do Executivo.

Ao explicar a recusa ao cargo, Ludhmila disse que seu trabalho é pautado pela ciência. "O presidente tem as posições dele, vou respeitar. Mas a minha participação no Ministério da Saúde seria técnica, científica", enfatizou. "É a ciência que vai tirar o país da pandemia. É a ciência que vai trazer de volta o pão com manteiga às mesas das pessoas."

A médica também se posicionou contra medicamentos defendidos por Bolsonaro como efetivos no combate à doença. "Todo o mundo sabe que o paciente tem que ser atendido precocemente. Isso é fato. Entretanto, algumas medicações pregadas, como cloroquina, ivermectina, azitromicina, o zinco e a vitamina C, já demonstraram não ser eficazes no tratamento da doença", frisou, em entrevista à CNN Brasil.

Ela revelou que chegou a prescrever cloroquina no começo da crise sanitária, quando ainda não havia estudos sobre a eficácia do remédio no tratamento da doença. Agora, explicou, o cenário é outro. "No início da pandemia, procurávamos uma salvação. Nós estávamos no desespero. Muitos de nós já prescreveram cloroquina, e eu também. Até que fomos lidando, felizmente, com os resultados que a ciência nos traz. Inúmeros estudos vieram para mostrar, de forma definitiva, a não eficácia desses medicamentos. Isso é algo que eu pontuei para mim e é algo do passado", ressaltou.

Segundo Ludhmila, "o Brasil, até o momento, errou no combate à pandemia". "E precisa de uma virada de entendimento e de ações. O governo subestimou a doença no início e está pagando o preço agora. Está correndo atrás da vacina de maneira tardia", lamentou.

Ela afirmou que a adoção de um lockdown nacional não é viável, mas torna-se necessário promover uma centralização das estratégias no Ministério da Saúde para auxiliar governos estaduais e municipais no momento de crise. "Às vezes, é necessário, sim, o lockdown. Vai ter dia que o município vai acordar sem leito de UTI, com as pessoas morrendo na porta de hospitais, morrendo dentro das ambulâncias. Não há outro jeito a não ser fechar e conter a transmissão", destacou. "Entretanto, isso não tem que ser uma política nacional, de maneira universal. Tem que ser pautada em decisões técnicas. Mas, ao mesmo tempo que a gente vai decretar lockdown em alguns municípios e estados, medidas eficazes para que seja rápido, temporário, têm que ser tomadas."

Ataques

A especialista relatou, ainda, ter ficado assustada com a reação de apoiadores de Bolsonaro que desprezam a ciência e contou que sofreu várias ameaças de morte e três tentativas de invasão no hotel em que está hospedada, em Brasília, após a reunião de domingo com o chefe do Executivo.

"Eu fiquei assustada como, neste momento de tristeza, uma pessoa da sociedade civil, que está aqui para o bem do país, sofre esse tipo de agressão. Tem muita gente querendo o mal do Brasil", lamentou a cardiologista, que tratou Pazuello quando ele teve covid-19.

De acordo com Ludhmila, seu número do celular pessoal foi divulgado em vários grupos de WhatsApp, e houve ataques contra ela e familiares. A médica disse ter contado a Bolsonaro, ontem, sobre as ameaças, mas que o presidente respondeu apenas: "Faz parte".

_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Governo nega convite

16/03/2021

 
 

A recusa da médica Ludhmila Hajjar em assumir o Ministério da Saúde provocou repercussão no governo e no Congresso. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, negou que a cardiologista tenha sido convidada para assumir o cargo. "Não procedem as informações de declínio do convite por divergências entre ela e o presidente da República. Houve conversas fluidas entre eles, mas não pode ter havido recusa a convite que não foi feito", enfatizou.

Já o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), procurou se esquivar sobre o assunto. No domingo, em suas redes sociais, ele defendeu o nome da médica. "Coloquei o que penso sobre Ludhmila Hajjar, mas a prerrogativa de escolha é do presidente", afirmou, em live dos jornais O Globo e Valor Econômico. "Nossa função é ajudar legislando e sugerindo nomes quando procurados."

Lira evitou fazer críticas ao governo no combate à pandemia do novo coronavírus. "Neste momento, não devemos apontar o dedo para ninguém", afirmou. Para ele, não é hora de buscar culpados, mas de encontrar formas de curar e vacinar pacientes. "Temos a obrigação de nos posicionar com equilíbrio na defesa do que é correto."

Já o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), ex-presidente da Câmara, foi enfático sobre a negativa da cardiologista: "Infelizmente, Ludhmila Hajjar não aceitou assumir o cargo de ministra da Saúde. Certamente, o presidente Bolsonaro não aceitou ter à frente do ministério uma gestão competente focada na ciência. Meu respeito pela dra. Ludhmila só aumentou, pois seus valores não são negociáveis".

Ao comentar o caso, a deputada Fernanda Melchionna (Psol-RS) questionou: "Quem, com o mínimo de conhecimento da área, aceitaria ser liderado por ele e obrigado a pregar o uso de cloroquina? É praticamente enterrar a carreira". O senador Humberto Costa (PT-PE) ressaltou que "quem respeita a ciência não se associa a este governo genocida".

Ação de seguranças
De acordo com Ludhmila, pessoas diziam que estavam com o número do quarto e que ela as estava esperando. "Diziam que eram pessoas que faziam parte da minha equipe médica. Se não fossem os seguranças do hotel, não sei o que seria", afirmou, em entrevista à Globonews. Ela contou ter sido alvo, também, nas redes sociais. "Criaram perfis falsos meus em Twitter, perfis falsos em Instagram."