O Globo, n. 31983, 01/03/2021. País, p.4

 

 

Incerteza jurídica

 

 Recorte capturado

Ministros do STF divergem sobre hipótese de Lira assumir Presidência

 

CAROLINA BRÍGIDO

carolina@bsb.oglobo.com.br

 

Embora Arthur Lira (PPAL) esteja convicto de que tem plenas condições de assumir a Presidência no caso de ausência de Jair Bolsonaro e do vice, Hamilton Mourão, não há certeza no meio jurídico sobre a situação do presidente da Câmara dos Deputados. O Supremo Tribunal Federal (STF), que fixou entendimento impedindo réus de figurarem na linha sucessória, já aceitou duas denúncias apresentadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), mas a defesa do deputado recorre dessas decisões — e afirma que, enquanto os recursos não forem analisados, ele não pode ser considerado réu. Ministros da Corte e juristas ouvidos pelo GLOBO divergem sobre Lira estar ou não apto para exercer a função.

Um dos recursos, cuja análise havia sido interrompida em maio de 2020, por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, será retomado amanhã na sessão da Segunda Turma do STF. Na sexta-feira, Gilmar devolveu o tema à pauta — o processo trata do “Quadrilhão do PP”, em que Lira e outros dirigentes do partido são acusados de comandar um esquema de corrupção na Petrobras. O outro caso, em que o presidente da Câmara é acusado de receber R$ 106 mil em propina, está parado desde novembro do ano passado, quando o ministro Dias Toffoli pediu vista.

 

“SEM EFEITO SUSPENSIVO”

O presidente do Supremo, Luiz Fux, em recente entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”, mostrou-se contrário à possibilidade de Lira sentar-se na principal cadeira do Palácio do Planalto.

— Eu acho que, realmente, uma pessoa denunciada assumir a Presidência da República, seja ela qual for, é algo que, até no plano internacional, não é o melhor quadro para o Brasil.

O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, disse ao GLOBO, por outro lado, que, como ainda há recursos pendentes de julgamento, Lira não pode ser considerado réu. Portanto, estaria apto a assumir a Presidência em caso de vacância:

— O processo crime somente surge após o recebimento da denúncia, e entende-se que esse recebimento deve estar aperfeiçoado. Recebida a denúncia, então passamos a ter réu, até então temos apenas envolvido. A situação concreta é essa. Se pendem embargos declaratórios, não foi aperfeiçoado o recebimento da denúncia. Portanto, o hoje presidente da Câmara não é réu no Supremo e está na linha de substituição do presidente da República.

Em caráter reservado, outros dois ministros do STF concordam com a posição de Marco Aurélio. Por outro lado, um terceiro ministro ouvido reservadamente endossou a visão de Fux —ou seja, Lira não poderia assumir interinamente o cargo de presidente. Ao jornal “Folha de S. Paulo”, o ministro Edson Fachin também foi na mesma direção e afirmou que “não há dúvida alguma” de que o recebimento da denúncia é o ponto que marca a transição de acusado para réu.

Para o advogado José Eduardo Alckmin, que já foi ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Lira está fora da linha sucessória:

— Os embargos de declaração não têm efeito suspensivo. O fato de ter embargos de declaração (pendentes de julgamento) não impede que o recebimento da denúncia tenha efeitos em todos os seus aspectos.

Já o ex-ministro do STF Carlos Velloso vai na direção oposta:

— Não existe na Constituição um preceito que o impediria de assumir.

Caso Bolsonaro e Mourão se ausentem ao mesmo tempo do país, certamente o questionamento será feito ao STF, e o plenário será compelido a se manifestar sobre o assunto, colocando um ponto final na controvérsia.

 

“NÃO SOU RÉU”

Em entrevista publicada pelo GLOBO em 21 de fevereiro, Lira defendeu que não há impedimentos para que assuma interinamente a Presidência, se necessário:

— A pessoa vira ré quando não tem mais nenhum tipo de decisão a ser tratada quando de uma recepção de denúncia que abre ação penal. Não tenho nenhuma ação penal instaurada no Supremo. Então, não sou réu.

Em 7 de dezembro de 2016, o Supremo definiu que políticos que são réus podem assumir as presidências de Câmara ou Senado, mas ficam fora da linha sucessória do Palácio do Planalto. À época, houve duas ações no STF questionando os casos de Eduardo Cunha e Renan Calheiros, que presidiram Câmara e Senado naquele ano.

 

 

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Um mês de comando na Câmara mostra que Centrão pode muito, mas não tudo

THIAGO PRADO

thiago.prado@oglobo.com.br oglobo.globo.com/analitico

 

Arthur Lira (PP-AL) completa hoje um mês no comando da Câmara dos Deputados, e o dia a dia vem lhe ensinando que o seu grupo pode muito, mas não pode tudo em Brasília. A realidade —alvissareira para quem temia um rolo compressor após o revés de Rodrigo Maia — é que mesmo o todo poderoso Centrão encontra obstáculos no projeto de se impor hegemônico na era Bolsonaro.

O saldo é de um episódio por semana após a vitória contra Baleia Rossi (MDB-SP). Logo no primeiro discurso como presidente, Lira subiu o tom e disse que a oposição não teria espaço na Mesa Diretora, desobedecendo a tradição da proporcionalidade no Congresso. Bastaram 24 horas de gritaria de deputados para o presidente da Câmara recuar e dar cargos na cúpula da Casa para partidos como o PT.

O caso Daniel Silveira carrega mais dois exemplos de mudanças de tom conforme a música toca. Na manhã seguinte à prisão determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, Lira disse a interlocutores que a ação por ofício do Supremo Tribunal Federal (STF) tinha problemas. O deputado chegou a telefonar para alguns colegas de Moraes na Corte, mas, com o tempo, passou a entender nas conversas que era irreversível a situação de Silveira. O 11 a 0 no plenário pela manutenção da detenção o fez desistir de vez e parar de atuar pela soltura do deputado bolsonarista.

Em seguida, veio a oportunidade de atuar mais uma vez como porta-voz do Centrão com um projeto que blindaria ainda mais a classe política nas ações judiciais. Parecia que a “PEC da Imunidade” — batizada sarcasticamente por críticos como da “Impunidade” —ia passar de maneira relâmpago na Câmara. Não foi o que aconteceu. Primeiro, Lira e a sua turma reconheceram a necessidade de voltar atrás no texto e deixar de mexer em artigos da Lei da Ficha Limpa. Depois, admitiram que passar a proposta sem sequer tramitar em uma comissão especial escancararia demais o caráter oportunista da medida (além de abrir brecha para um questionamento no Judiciário). Por fim, houve receio de derrota no plenário, onde eram necessários 308 votos para a aprovação.

Mesmo a meta de Lira e companhia de avançar em cima da chave dos cofres da União foi travada por ora. Em entrevista ao GLOBO, o deputado defendeu a desvinculação dos recursos do Orçamento nas áreas de Educação e Saúde. Ousou dizer, em plena pandemia, que o ministério tocado pelo general Eduardo Pazuello, tinha recursos demais à disposição. Dias depois, diante da pressão gigantesca de bancadas temáticas do Congresso e da sociedade civil contra a desvinculação, o relator da PEC Emergencial, senador Márcio Bittar (MDB-AC), acabou retirando a ideia de Lira do texto.

Apesar das quatro derrotas de Lira, nas próximas semanas seguirão em curso as agendas do Centrão para reduzir a voz da esquerda, endossar o bolsonarismo, atacar o legado da Lava-Jato e aumentar a influência no Orçamento. O bloco quer reduzir os instrumentos que a oposição tem para obstruir a pauta; deseja entregar ao Planalto a eleição de Bia Kicis (PSLDF) para a Comissão de Constituição e Justiça; articula mudanças nas leis de improbidade administrativa e lavagem de dinheiro, além de querer proteger escritórios de advocacia de operações policiais; e demanda uma reforma ministerial mais robusta que a feita até agora (entregar apenas o Ministério da Cidadania para o deputado João Roma, do Republicanos, está longe de ser considerado suficiente).