O Globo, n. 31983, 01/03/2021. Sociedade, p.8

 

 

Só com 0,04% dos alunos, escola em casa é prioridade

 

Para governo, homeschooling está à frente de temas que impactam mais de 39 milhões de alunos de escolas públicas

 

BRUNO ALFANO

bruno.alfano@extra.inf.br

 

Prioridade solitária lista danos 35 pontos centrais para 2021 que o presidente Jair Bolsonaro (Sem partido) enviou ao Congresso, a prática de homeschooling passou à frente de temas que impactam estruturalmente os mais de 39 milhões de alunos brasileiros de escolas públicas. A modalidade, segundo a Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), tem quase 18 mil alunos no país—0,04% do total de estudantes no ensino regular.

— Há pautas que precisam avançar agora, como a regulamentação do Sistema Nacional de Educação, para uma recuperação melhor da aprendizagem que agente perdeu na pandemia, e ado Fundeb; e a lei do piso, que está desatualizada— diz Lucas Hoogerbrugge, gerente de Estratégia Política no Todos Pela Educação.

Defensores do ensino em casa argumentam que a modalidade está há 25 anos esperando regulamentação e, com mais pessoas aderindo à prática, necessita ser juridicamente resolvida.

— A educação domiciliar, como uma realidade social, já existe há algumas décadas no Brasil. Oque está acontecendo agora é a busca pelo reconhecimento jurídico. O ideal é ter uma boa lei de nível nacional. Não havendo, estados e municípios têm o direito de fazê-la— defende Alexandre Magno Moreira, advogado e autor do livro “O direito à educação domiciliar”.

Em 2018, o STF considerou que os pais só teriam direito a retirar seus filhos da escola em locais com o homeschooling regulamentado. No Distrito Federal, isso foi feito no fim de 2020. Vitória, no Espírito Santo, e Cascavel, no Paraná, também já finalizaram o processo. Na capital fluminense, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) apresentou um projeto de lei do tipo há duas semanas.

Em 2019, o presidente Bolsonaro enviou ao Congresso um projeto de lei (PL) para regulamentar o homeschooling. A expectativa é a de que o recém-eleito presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), aliado do governo, ajude coma aprovação da lei.

O PL, que ainda está em tramitação, oferece às famílias a opção da modalidade através de registro em uma plataforma do governo federal. E também da apresentação de um plano pedagógico individual, proposto pelos pais ou responsáveis legais, coma inserção de registros periódicos na plataforma das atividades pedagógicas do estudante.

 

‘NÃO É PAUTA DE COSTUMES’

Os alunos, nesse modelo, seriam avaliados anualmente, coma possibilidade de uma prova de recuperação. E se o estudante não passar por dois anos consecutivos no exame perde-se o direito do ensino domiciliar. Caso perca aprova, também deverá voltar ao modelo escolar.

—Se houvera regulamentação, é preciso que o Brasil encontre o seu próprio modelo, pensado de acordo com as necessidades das famílias que já praticam a educação domicilia reque, de fato, necessitam dela —afirma Maria Celi Vasconcelos, professora da Uerj e organizadora do livro “Educação domiciliar no Brasil: Mo (vi)mento em debate”.

O ensino domiciliar é uma promessa de campanha de Bolsonaro e atende a uma parte da sua base eleitoral. Ele já chegou a afirmar que a modalidade “ajuda a combater o marxismo”.

No entanto, Alexandre Magno Moreira afirma que esta não é uma pauta de costume seque o perfil de família sé diversificado, apesar de a maioria ser de fato de conservadores e religiosos. Segundo ele, a discussão em torno da modalidade é “questão de liberdade civil e autonomia da família”.

—É a possibilidade de cada pai e mãe poder escolher o que é melhor para os seus filhos — afirma o advogado.

Pesquisadora do tema, Vasconcelos afirma que o perfil de famílias que praticam o ensino domiciliar no Brasil inclui religiosos mas também aqueles com estilo de vida alternativo:

—Famílias que viajam constantemente, as que têm crianças que necessitam de atendimento especializado, filhos que sofreram bullying na escola... —aponta.

Amineira Kátia Nunes ,36 anos, viveu em cinco cidades de quatro regiões diferentes do país, nos últimos três anos, por causa do emprego do marido. Por isso, optou por ensinar os filhos em casa — atualmente, em Florianópolis.

— Eles têm uma rotina diária de estudos e acompanham o que aprenderiam na escola, mas no ritmo deles. Caso se interessem por algo, nos aprofundamos. Se tiverem dificuldade, levamos o tempo que for necessário. Quando tenho problemas para ensiná-los, contrato tutores — conta a mãe de Nina, de 7 anos, e Arthur, de 11.

Formada em enfermagem e gastronomia, Kátia é cristã, crítica do governo Bolson aro e trata de temas raciais (“com amor”, ela diz) aos filhos.

—Mesmo as famílias educadoras apoiadoras do governo não são, em sua maioria, fanáticos que ensinam criacionismo. Não vejo essa loucura fundamentalista dentro da comunidade homeschool—conta.

 

MUDANÇAS COM A PANDEMIA

Entre os 36 países da OCDE, 30 têm regulamentações estabelecidas para o ensino domiciliar. Nos EUA, há programas nos quais os alunos aprendem com professores à distância, uma forma similar ao que vem acontecendo no Brasil durante a pandemia.

Já o modelo inglês é mais parecido ao que o movimento pró- regulamentação da educação domiciliar defende no Brasil, coma família sendo responsável direta pela educação de seus filhos.

—A experiência americana criou um mercado de soluções pedagógicas que tem o objetivo de diminuir a matrícula na escola. A promessa desses grupo sé ad eque, em casa, você gasta até 60% menos coma educação de seus filhos. O risco é regulamentar o homeschooling no Brasil, coma justificativa de atender 10 mil famílias, e incentivar modelos flexíveis de escolarização que são perigosos — diz Salomão Ximenes, pesquisador da Universidade Federal do ABC.

Para Ximenes, a pandemia, com restrições orçamentárias, tem potencial de transformar o ensino híbrido como alternativa permanente.

— Educação domiciliar adaptada às classes populares pode ser chamativa para gestores preocupados como orçamento. Mas o impacto das desigualdades educacionais pode ser perigoso—diz.