O Globo, n.31987 , 05/03/2021. ,Colunas p.3

 

O vermelho de Bolsonaro
Flávia Oliveira
05/03/2021

 

 

 

Não há medida que esconda o fracasso maiúsculo do Brasil no enfrentamento à pandemia. Sob a mão de Jair Bolsonaro, o país apequenou-se de cabo a rabo. É ilha num mar de dramáticos indicadores sanitários, sociais, econômicos, fiscais. Um quarto de milhão de brasileiros já perdeu a vida. Num mix de indiferença e incompetência, a nação que, um ano atrás, em três semanas vacinou contra a gripe 18,9 milhões de idosos e 3,8 milhões de profissionais de saúde, nos últimos dois meses não imunizou nem oito milhões contra a Covid-19. O país maculou um de seus orgulhos, o Programa Nacional de Imunização, porque a administração povoada de militares planejou mal e executou debilmente. A economia encolheu 4,1% em 2020 (o pior resultado da série histórica iniciada em 1996) e saiu da lista das dez maiores do mundo. Adentrou o novo ano em frangalhos, com atividade patinando, Orçamento pendente, equipe econômica enfraquecida, política social interrompida, miséria alargada.

O Brasil colheu doença e morte, desemprego e empobrecimento, fome e desesperança. O presidente debocha, e a pandemia se agrava. No início da semana, a Fiocruz publicou edição extraordinária do boletim Observatório Covid-19. O conteúdo tratou sem sutileza da formação de um patamar de intensa transmissão do coronavírus. Dias antes, o médico e cientista Miguel Nicolelis antecipara o colapso sanitário e alertara também para o risco da tragédia funerária ora materializada numa escala próxima de duas mil mortes por dia. Pela primeira vez desde o início da pandemia, escreveram os especialistas da Fiocruz, o país experimentava o agravamento simultâneo de número de casos e óbitos, níveis altos de incidência, grande proporção de testes positivos e sobrecarga de hospitais.

Ontem, nova evidência da catástrofe veio numa sequência de 17 mapas com a taxa de ocupação de leitos de UTI Covid-19 para adultos desde julho do ano passado. À época, três estados (Mato Grosso, Goiás e Bahia) estavam com mais de 80% de utilização; em outubro, nenhum. Neste início de março, 18 estados e o Distrito Federal estão em nível crítico. “Mesmo no período entre a segunda metade de julho e o mês de agosto, quando foram registrados os maiores números de casos e óbitos, não tivemos um cenário como o atual, com a maioria dos estados e o DF na zona de alerta crítica”, diz o documento. Das 27 unidades da federação, apenas Sergipe tem proporção baixa (59% de ocupação de leitos de terapia intensiva); Amapá, Paraíba, Alagoas, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo aparecem em nível médio (de 60% a 80% de ocupação)

O primeiro boletim da Fiocruz fez o prefeito do Rio, Eduardo Paes, ampliar (modestamente) as restrições na cidade. Horário de bares, restaurantes (6h às 17h) e atividades comerciais (6h às 20h) foi reduzido, e a lotação, limitada a 40% da capacidade; boates, rodas de samba, eventos públicos e privados estão proibidos. Entidades do setor, como o Sindicato de Bares e a Fecomércio RJ, estão cobrando medidas de reparação aos prejuízos decorrentes da mudança, alegam, implementada sem diálogo. Desde hoje, a permanência em vias, espaços públicos e praças está proibida entre 23h e 5h, mas a circulação de pessoas é livre. Ambulantes e quiosques vão fechar, mas o acesso às praias está liberado. O decreto de Paes não tratou da superlotação dos transportes públicos, um dos maiores problemas da capital fluminense desde o ano passado.

As medidas de supressão num país apresentado no noticiário internacional como ameaça global na pandemia, pela livre circulação de novas cepas do coronavírus e pela transmissão acelerada na população, deveriam ser articuladas pelo Ministério da Saúde. Mas o general Eduardo Pazuello obedece a um presidente da República que, não satisfeito com o rol de fracassos que acumula, segue em frente. Repete erros com indisfarçável orgulho. Ofende quem perdeu entes queridos. Despreza o distanciamento social e o uso de máscara. Lança suspeitas sobre vacinas. Debocha da ciência. Tudo isso sob aplausos de uma claque de alienados e rodeado por ministros e assessores sem apreço pelas próprias biografias.

Jair Bolsonaro foi eleito por 57 milhões de brasileiros e se mostra indiferente à vida de mais de 200 milhões de compatriotas. Está à frente da administração com os piores resultados no enfrentamento à pandemia. O autocrata que prometeu banir partidos e militantes da esquerda está tingindo a nação com o vermelho da emergência sanitária e da terra que se abre em covas para abrigar os caixões dos brasileiros que morrem diariamente, um a cada 46 segundos. No documento extremo, a Fiocruz apela a autoridades federais, estaduais e municipais, ao Legislativo e ao Judiciário, empresas e organizações da sociedade civil pelo enfrentamento à pandemia. Que sejam rápidos.

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Chega de mimimi

Bernardo Mello Franco

05/03/2021

 

 

Nem a morte de 261 mil brasileiros é capaz de extrair alguma humanidade de Jair Bolsonaro. No pior momento da pandemia, o capitão voltou a ostentar desprezo pelo sofrimento alheio. “Chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, debochou ontem, em Goiás.

As duas frases sintetizam a visão do presidente sobre a tragédia. Nas palavras dele, os esforços para conter a doença não passam de “frescura”. Quem usa máscara tem “medinho do vírus”. Quem respeita as regras de distanciamento é “frouxo” e “covarde”.

Obcecado por afirmar sua masculinidade, o capitão diz que é preciso enfrentar o vírus “como homem, não como moleque”. “Tem que deixar de ser um país de maricas!”, esbravejou, em outro comício contra o isolamento social.

Com o termo “mimimi”, o presidente tenta desmerecer as críticas a seu comportamento irresponsável. A gíria foi adotada pela militância bolsonarista para ironizar minorias e grupos oprimidos. Quem protesta contra o racismo é “vitimista”. Quem contesta a homofobia é “mimizento”.

Por essa lógica, também é “mimimi” reclamar de um governo que ignora a ciência, deixa pacientes sem oxigênio e sabota a negociação de vacinas. Ontem o capitão chamou de “idiota” quem reivindica a compra de imunizantes para todos. “Só se for na casa da tua mãe!”, acrescentou.

A pergunta “Vão ficar chorando até quando?” expõe Bolsonaro em estado puro: um político que despreza a vida e celebra a morte.

Em 28 anos no Congresso, ele se notabilizou por exaltar torturadores e dizer que a ditadura “matou pouco”. Quando a Justiça ordenou buscas por ossadas de desaparecidos no Araguaia, enfeitou o gabinete com um adesivo que dizia “Quem procura osso é cachorro”. Agora, ele achincalha os parentes das vítimas da Covid-19.

Bolsonaro não vai mudar. Enquanto permanecer no cargo, continuará a atentar contra a saúde pública e a desrespeitar as famílias enlutadas.

Hoje completa um mês o pedido de impeachment apresentado por médicos como Gonzalo Vecina e José Gomes Temporão. O documento lista dezenas de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente na pandemia. Pressionar a Câmara a aceitá-lo é uma forma de transformar a indignação em ação.