Título: O poder das urnas
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 31/01/2005, opinião, p. A10

Apesar de todas as incertezas quanto ao futuro após as eleições gerais iraquianas, a população enviou um recado objetivo ao desafiar toda sorte de ameaças para exercer o voto. Em que pesem as divergências que separam as diferentes etnias nesse país árabe inventado em 1941 pela Grã-Bretanha, o povo deixou claro que não abre mão do direito de escolher o norte do seu futuro. E de enterrar o passado de sofrimento e opressão sob o regime corrupto de Saddam Hussein.

A mensagem foi enviada tanto aos militares dos Estados Unidos, o ocupante que se investiu do papel de fiador do pleito, quanto para a sangüinária insurgência liderada pelo jordaniano Abu Musab al Zarqawi, autor de ameaças de execução sumária para quem fosse aos postos eleitorais. Perdeu a truculência, ganhou quem acredita na força do diálogo.

O eleitor no Iraque fez da cédula uma arma tão poderosa quanto os fuzis e deu uma demonstração de coragem sem precedentes ao resto do mundo. Vivendo em uma rotina de bombas e medo, descobriu que as urnas intimidam aqueles que tentam impor um destino que não desejam para os filhos. As gerações futuras devem muito a quem encheu as ruas em Bagdá, Faluja, Mosul e tantas outras cidades que vivem dentro dos embates entre rebeldes e as forças americanas.

Saem ganhando, também, o presidente americano e seus aliados. Bush insistiu para que não houvesse adiamentos, dentro da ótica particular que o processo eleitoral levaria um vento democrático não só ao Iraque mas aos demais países do Oriente Médio. Se há dúvidas quanto à definição para democracia da Casa Branca, não há, pelo que se viu, quanto à maneira como os iraquianos pensam em como exercê-la.

Diante da disposição para enfrentar filas, para preencher uma cédula do tamanho de uma folha de jornal, para superar o enorme esquema de segurança e até para desqualificar a sinistra liderança de Zarqawi, fica a certeza de que os povos gostam de escolher quem os governará.

Passado o momento de euforia, porém, a vida retoma a normalidade. Até agora, o processo de democratização do Iraque vinha correndo dentro de um cronograma no qual sobravam alertas. O comparecimento às urnas de 60% dos eleitores é um detalhe auspicioso, mas não suficiente para dissolver as desconfianças quanto à capacidade dos futuros parlamentares para superar desafios vindouros.

O primeiro deles é derrotar a insurgência que se apropriou do nacionalismo para aterrorizar a população; a guerrilha não a manteve em casa e não vai aceitar uma nova confrontação. O segundo é a própria fragilidade do país tanto economicamente quanto do ponto de vista geopolítico. Um fator alimenta o outro. Os milhares de votos mostraram que quebrar essa corrente é algo possível.