Título: Auschwitz: 60 anos depois
Autor: Maria Clara L. Bingeme* Teóloga
Fonte: Jornal do Brasil, 31/01/2005, Opinião, p. A11

Os diversos meios de comunicação nos vêm mostrando, nos últimos dias, uma série de reportagens e discursos sobre os 60 anos da libertação do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia. No dia 26 de janeiro, o primeiro-ministro da Alemanha, Gerhard Schröder, declarava em nome de seu país os sentimentos de dor e culpa pelo que ali aconteceu. E o presidente francês, Jacques Chirac, organizava em Paris uma reunião com os sobreviventes de Auschwitz, emocionante cerimônia onde se podiam ver rostos emocionados cantando canções judaicas, tristes e nostálgicas.

Auschwitz abrigava o grande quartel-general daquilo que o nazismo chamava de ''a solução final''. Para lá eram levados trens cheios de judeus e comunistas. Ali, homens, mulheres e crianças eram submetidos a uma triagem: uns iam para o trabalho forçado; outros diretamente para a morte, nas câmaras de gás e nos fornos crematórios. As crianças eram separadas das mães, os maridos das mulheres, e todos perdiam a identidade, seja pela morte, seja pelo fato de serem tratados como meros instrumentos de um trabalho sem objetivo.

As forças aliadas, segundo o filme A prova esquecida (La preuve oubliée), exibido nas televisões européias, ignoraram durante longo tempo o que se passava naquele campo. A prova esquecida são fotos de fornos e câmaras de gás que foram arquivadas em uma gaveta e só encontradas em 1945, quando, finalmente, Auschwitz foi libertado das mãos nazistas, com a Alemanha já derrotada.

A Europa do pós-guerra teve que lutar durante longo tempo com o fantasma de Auschwitz. O genocídio planejado e praticado sistemática e cruelmente de todo um povo levantava perguntas ao pensar filosófico, à fé e à teologia. Muitos judeus declararam que seu Deus havia morrido em Auschwitz. E muitos cristãos se perguntaram: ''Como falar de Deus depois de Auschwitz?''

Aqueles que começaram novamente a pensar e falar sobre Deus nessas circunstâncias, em lugar de eludir o trauma, mergulharam dentro dele. O pensamento de grandes filósofos como Hans Jonas questiona a afirmação de que Deus tem em suas mãos o controle da história. E a teologia de Jurgen Moltmann e Eberhard Jungel afirma que falar de Deus depois de Auschwitz só pode ser falar de um Deus cuja presença dentro da história se dá identificando-se profunda e dolorosamente com as vítimas.

Quando a dor, o sofrimento e a morte são o único horizonte possível, onde estará Deus? Quando os valores se invertem e só se tem diante dos olhos o antivalor, o antimodelo, qual é o lugar que sobra para Deus, para o Absoluto, silenciado e amordaçado pela força brutal do mal e do extermínio? Só pode estar ao lado das vítimas, identificado com elas, sofrendo nelas e com elas. Não há outro lugar para um Deus que se revelou a Si mesmo como amor, compaixão e perdão.

Da barbaridade do genocídio, do qual Auschwitz era o laboratório mais refinado, temos vários testemunhos que nos fazem ver como a condição humana, mesmo esmagada e coisificada pelo domínio da força, é capaz de encontrar caminhos de dignidade e de sentido.

Edith Stein, judia, convertida ao catolicismo e carmelita, ofereceu a Deus sua vida em expiação para salvar seu povo. Presa junto com sua irmã Rosa, é enviada para Auschwitz, onde morre na câmara de gás. O testemunho que dela nos ficou pelos que com ela conviveram durante o período entre a prisão e a morte nos diz que Edith se ocupava de limpar e cuidar das crianças, muitas vezes abandonadas pelas mães que enlouqueciam de dor.

Elie Wiesel, antes um menino judeu piedoso, sofreu todos os horrores do campo e lá viu morrer sua família. Sobreviveu por milagre e em seu livro Noite narra que quando se olhou num espelho, após vários meses de hospital, não conseguiu reconhecer o cadáver que o olhava nos olhos.

Todos nos dizem que 60 anos depois o ódio, o rancor, a vingança não são caminhos adequados para tratar tão enorme e profunda ferida. Mas o esquecimento também não. As celebrações do maior genocídio de que a humanidade tem notícia nos relembra que a memória é o que nos faz humanos, pois nos permite relembrar as maravilhas, não esquecer os horrores e ir caminhando na direção de um mundo mais humano e menos violento.

*Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio