O Globo, n.31988 , 06/03/2021. Mundo p.21

 

Entrevista - Samantha Power: "Vai ser bom para o Brasil trabalhar com EUA competentes de novo"

Isabel Fleck

06/03/2021

 

 

Nos últimos quatro anos, a ex-embaixadora dos Estados Unidos na ONU Samantha Power observou de uma sala na Universidade Harvard o governo Trump desfazer vários de seus esforços no principal fórum multilateral do mundo. Para ela, o prejuízo causado pelo ex-presidente “é quase imensurável” e vai além de “danos óbvios” em abandonar por anos o Acordo de Paris ou o acordo com o Irã.

— Mais do que isso, o que Trump fez foi gerar em todo o mundo dúvidas reais sobre se os EUA são confiáveis — disse Power, em entrevista ao GLOBO nesta semana. Para ela, os países agora pensarão duas vezes no risco político de negociar com o país algo que poderá ser desfeito em quatro anos pelo próprio Trump ou por “Trump Jr.”.

Power diz acreditar, contudo, que mesmo os governos que eram próximos a Trump, como o de Jair Bolsonaro, e que não gostaram da mudança em Washington, “vão achar benéfico trabalhar com um país que é competente de novo”.

— Independentemente do "bromance" entre Bolsonaro e Trump, para a população brasileira e para outros funcionários que trabalham no governo brasileiro era muito difícil, porque (…) era uma relação completamente imprevisível.

Indicada por Joe Biden para assumir a USAid, agência que coordena a ajuda americana a outros países, Power lança agora no Brasil seu livro de memórias “A educação de uma idealista”, onde conta o que aprendeu na trajetória de jornalista e ativista de Direitos Humanos a embaixadora nas Nações Unidas. Uma das lições ela promete levar para o novo posto se for confirmada pelo Congresso americano: a de que não é possível fazer tudo sozinho, seja como indivíduo ou país. 

— Acho que o maior aprendizado foi "peça ajuda" — diz. — Ainda mais em tempo de Covid, nós não vamos conseguir passar por isso sozinhos.

No seu livro, você fala sobre como era questionada, quando entrou para o governo Obama, sobre as diferenças entre a “velha Samantha”, uma idealista “outsider”, que criticava posições americanas sobre direitos humanos, e a “nova Samantha”, que fazia parte do governo. O que a Samatha de hoje falaria para as outras duas? 

Diria que as pessoas da minha idade, por muito tempo, davam como garantidas a saúde e a sobrevivência da democracia, e que nós não podemos nunca mais ser comodistas com as coisas que damos como certo. Agora [com Trump] vimos que as coisas podem se tornar piores. Hoje há um contexto entre um modelo democrático e um muito mais autoritário, e ele está acontecendo em todo o mundo. Essas forças obscuras estão em todos os nossos países: pessoas que não acreditam em direitos humanos, ou acreditam que os direitos humanos são chatos.

As guerras com as quais eu tive contato como jornalista pareciam algo do passado. Mas pegue a Bósnia, por exemplo: aquele nacionalismo e até sectarismo hoje mais se parecem como uma prévia de coisas que hoje estão rachando os países internamente e causando divisões no mundo.

Certamente, hoje o mundo tem muito mais centros de poder, e quando falamos de democracia, nós temos que nos desdobrar juntos. A liderança dos EUA é fundamentalmente importante, e a velha e a nova Samantha sabem bem disso. Mas o que é diferente agora, com a ascensão chinesa e de outras nações, é que os EUA vão ser muito mais eficientes canalizando respostas internacionais com outros países e, principalmente, outras democracias ao nosso lado. Há poucos assuntos hoje em que os EUA podem responder sozinhos.

De um lado mais pessoal, como imigrante, como mulher, sempre tentei fazer as coisas por mim mesma, não depender de ninguém. E acho que o meu maior aprendizado neste tempo foi “peça ajuda”. Você não consegue fazer sozinho.

E essa é a mensagem que eu quero levar se for confirmada para liderar a maior agência de desenvolvimento do mundo, a USAid. Ainda mais em tempos de Covid-19, nós não vamos conseguir passar por isso sozinhos.

Biden já mostrou que está disposto a resgatar a participação dos EUA em fóruns e debates multilaterais. Quanto espaço os EUA perderam nos anos Trump, e é possível recuperá-lo?

Acho que o prejuízo é quase imensurável. É tão profundo. E vai além do fato de perder quatro anos da liderança dos EUA internacionalmente, como por exemplo, em mudanças climáticas. Há danos óbvios em não ter tratado de um problema dessa magnitude. Há danos óbvios em explodir com o acordo com o Irã e agora Teerã estar muito mais próximo de uma arma nuclear por causa das decisões ruins de Trump. Mas mais do que isso, o que Trump fez foi gerar em todo o mundo dúvidas reais sobre se os EUA são confiáveis. Nenhum de nós pode subestimar o desafio que será agora fechar acordos com outros países, porque esses países podem pensar: "como podemos saber se um Trump ou um Trump Jr. não virá em 4 anos e desmanchará o que foi feito? Por que vamos assumir esse risco político?”

Você falou sobre o embate, nos países, entre um modelo democrático e um muito mais autoritário. Como o governo Biden deve lidar com governos de viés mais autoritário e que, como é o caso do Brasil, tinham forte conexão com Trump?

Acho que essas relações vão ser muito complexas. A era da completa impunidade não está mais entre nós  — e eu não estou falando especificamente sobre o Brasil, mas em todo o mundo, por exemplo, com [o príncipe herdeiro saudita] Mohammad bin Salman tendo ordenado o assassinato de um residente permanente dos EUA, sem consequências  — e eu sei que há um debate sobre o que Biden acabou de fazer. Mas mesmo os países que não gostam dessa mudança [do governo Biden] em direção a uma maior atenção aos direitos humanos em outros países vão achar benéfico trabalhar com um país que é competente de novo.

Independentemente do “bromance” entre Bolsonaro e Trump, para a população brasileira e para outros funcionários que trabalham no governo brasileiro era muito difícil, porque você não sabia se ia acordar com um tuíte relacionado a práticas comerciais, vistos para estudantes brasileiros  — era uma relação completamente imprevisível.

Então eu acredito que, para o Brasil, a mudança para a transparência, uma melhor comunicação, uma governança competente, onde o que os secretários de Defesa e de Estado dizem está alinhado e reflete a opinião do presidente. Tudo isso vai vir como um grande alívio.

Como embaixadora da ONU, você teve uma relação de muito embate mas também de muita negociação com o então embaixador russo Vitaly Churkin, como mostra no livro. Na última semana, o governo Biden aplicou sua primeira sanção à Rússia, por ter tentado envenenar o opositor Alexei Navalny. Qual deve ser o tom dos EUA com a Rússia hoje?

Você vê, no que o Biden fez, a intenção de criar responsabilização onde era justificado e, ao mesmo tempo, de estabilizar a relação. Porque uma das primeiras coisas que o presidente fez foi prorrogar o [tratado nuclear] Novo Start com a Rússia. E isso seria o tipo de coisa que o embaixador Churkin teria celebrado  — porque se você consegue construir confiança numa área como essa, ela pode se espalhar e o presidente Putin pode ver os benefícios dessa relação. Então o que Biden vai fazer é olhar para essas áreas de interesse compartilhado, mas se afastar da postura de Trump que era de impunidade por invadir outros países, conduzir ciberataques e envenenar opositores.

Em fevereiro, uma enviada da ONU à Venezuela recomendou que EUA e Europa relaxassem as sanções ao país por estarem piorando a situação humanitária. Neste caso, as sanções são a melhor opção? Os EUA devem ouvir esse chamado?     

Eu não tenho nenhum conhecimento específico sobre isso. Sei que o esforço é sempre feito para costurar as sanções de modo que elas afetem indivíduos específicos, por exemplo, Maduro e seus aliados, particularmente seus colaboradores no Exército. Eu sei que os EUA são os maiores doadores mundiais para a Venezuela. Mas esse é o tipo de questão que o presidente Biden assumiu o compromisso de olhar  — e não só lá na Venezuela  —, para que a responsabilização do governo Maduro pela destruição da infraestrutura humanitária da Venezuela não agrave a devastação, a desnutrição, a falta de acesso a medicamentos.

No seu livro, você diz que a história da pandemia de Covid-19 ainda não está escrita, e que todos teremos que fazer mais. Se for confirmada pelo Congresso, você assumirá em breve a USAid, agência que coordena a ajuda prestada pelos EUA a outros países. Diante da discrepância de acesso entre países ricos e pobres às vacinas contra coronavírus, os EUA poderiam fazer mais para garantir um equilíbrio? 

Eu acho que os EUA vão fazer mais. E acho que vamos nos mover o mais rápido possível para fazer mais. O pacote que está hoje no Senado tem cerca de US$ 10 bilhões para a resposta de Covid, e acho que vai ser uma combinação de mais ajuda para vacinas, mais apoio para a Covax [consórcio global de vacinas] com o tempo. Também estão previstos mais cuidados para os efeitos secundários econômicos e de saúde  — como se sabe, o número de pessoas hoje sofrendo de desnutrição dobrou por causa dos efeitos econômicos relacionados à Covid. O que vai ser interessante é que agora, com mais vacinas, como a aprovação da vacina da Johnson & Johnson, é que os EUA vão estar em posição de canalizar parte das vacinas que são produzidas aqui para outros países. Sei que essa é uma questão que o governo Biden está olhando.