O Globo, n.31989 , 07/03/2021. Sociedade p.13

 

Colpso generalizado

Henrique Gomes Batista

Gustavo Schmitt

Dimitrius Dantas

07/03/2021

 

 

Da triagem ao óbito, nó da pandemia estrangula todo o sistema de saúde

Na semana mais letal da pandemia, de norte a sul do país o atendimento ultrapassou o limite, com caos na triagem, enfermeiros e médicos exaustos e falta de leitos, remédios e insumos. Até no desfecho trágico há escassez: faltam covas e, sem necrotérios, corpos ficam em contêineres.

UPAs funcionando como hospitais. Parentes recorrendo à Justiça para conseguir internação. Enfermeiros e médicos trabalhando no limite, sem férias há dois anos e sem o reconhecimento das “palmas nas janelas”. Envio de pacientes a outros estados por falta de vagas em UTIs. Corpos alocados em contêineres por ausência de espaço em necrotérios. Falta de covas para enterrar quem perdeu a batalha para a Covid-19. Esses são os retratos da fase mais crítica da pandemia no Brasil. Histórias que se repetem de norte a sul, expondo dramas que vão além dos números dos recordes de mortos e da angústia da espera por leitos hospitalares, que atingia ao menos 2.346 pessoas em todo o país na tarde de ontem.

Realidade causada, segundo especialistas, pela negligência do governo federal e pelo descaso da população, agravada por variantes mais contagiosas do vírus. Um país que tenta silenciosamente salvar vidas, sem tempo sequer para reclamações ou “mimimis”, como afirmou o presidente Jair Bolsonaro. Poupado na primeira onda da pandemia, o estado de Santa Catarina tinha 291 pacientes na fila da UTI anteontem — ao menos 36 pessoas morreram na espera. Com o sexto maior PIB do Brasil, o estado teve de pedir ao governo federal remessas extras de relaxantes musculares usados na intubação de pacientes. Ricardo Vieira, clínico geral em Florianópolis, conta o drama:

—Hoje (sexta-feira) uma colega me disse que, pela primeira vez, teve que escolher quem ia pra UTI. Eu mesmo tenho vivido isso. É o tipo de coisa que a gente não está preparado para enfrentar. É impossível tirar essa situação da cabeça mesmo depois de sair do trabalho.

Em Porto Alegre, onde a ocupação dos leitos de UTI chegou a 100%, a chamada “escolha de Sofia” também se tornou realidade entre médicos. Alexandre Zavascki, infectologista do Hospital Moinhos de Vento — que alugou um contêiner para dar conta da armazenagem dos corpos após faltar espaço no necrotério — e do Hospital de Clínicas, chega a embargar a voz ao descrever o que tem enfrentado:

— Comecei a semana dizendo para a família de um paciente que ele não poderia ir para a UTI e faleceria na enfermaria. É uma decisão muito difícil —diz o médico.

— A gente se acostumou a dar notícia da morte dos pais e avós com Covid-19 para filhos e netos. Mas agora estamos falando com as mães e os pais: “Olha, o seu filho não está respondendo.” A tempestade perfeita do colapso nacional ocorre quando situações como essas são vividas em estados tão diferentes como o Paraná, com 811 pessoas na fila por leitos, e Tocantins, com 90% da ocupação hospitalar.

Já em São Paulo, na última terça-feira, a Central de Regulação de Vagas do estado recebeu, em apenas um dia, 901 pedidos de internações, um a cada dois minutos. Postos de saúde para atendimento básico, como UPAs, têm funcionado, na prática, como hospitais:

—Pacientes que deveriam apenas receber o tratamento de emergência em UPAs ficam dois, três dias internados, esperando vaga nos hospitais de São Paulo — afirma Gerson Salvador, infectologista do Hospital Universitário da USP. Para tentar evitar que pacientes com suspeita de Covid-19 tenham contato com outros, a prefeitura de Salvador criou seis “gripários”, salas segregadas nas UPAs para atendimento exclusivo dos diagnosticados com síndromes gripais.

— Conseguimos dobrar o número de leitos que tínhamos. Se não fosse isso já teríamos chegado ao colapso, algo que quase aconteceu na quinta-feira, o pior dia da minha vida — afirma o secretário de saúde da capital baiana, Léo Prates.

QUANDO A JUSTIÇA DEMORA

Familiares têm recorrido à Justiça para internar um parente. Mas nem sempre a resposta chega em tempo hábil. Cassia Lopes Rodrigues, de 31 anos, morreu no dia 26, grávida de 21 semanas, horas após ter saído a decisão que a garantia um leito em Itacoatiara (AM). Em Bauru, no interior de São Paulo, a reportagem descobriu dez processos com sentenças obrigando o governo a disponibilizar ou custear um leito na rede privada. Uma delas é para Lais Regina, que é diabética e estava com saturação de oxigênio de apenas 45%. Seu marido, Marcelo Queiroz, corria contra o tempo:

— É desesperador. Tivemos que buscar um advogado para correr atrás dessa vaga, mas dizem que não tem mais leito em lugar nenhum —diz Marcelo. No Pará, não há nem tempo para a Justiça atuar. Na quarta-feira, centenas de pessoas aguardavam atendimento diante do Hospital de Campanha de Belém, no Hangar. Dentro da unidade, de acordo com profissionais da saúde, faltam especialistas, medicamentos e equipamentos.

— Uma amiga trouxe para cá a mãe e a irmã, ambas com Covid-19. Um outro colega trouxe o sogro e a sogra, também doentes. É uma situação complicada, com pouquíssimos leitos — diz, do Hangar, a infectologista Helena Brígido, professora da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Em um grupo de WhatsApp de médicos de Pernambuco, as conversas permeiam o terror, com um toque de déjà-vu. “Os nefro (nefrologistas) vão mandando o que acontece de hora em hora. Na última hora foram três óbitos”, diz um médico em um dos grupos acessados pela reportagem. “Hoje, chorei. Tudo voltando. Passou um ano e não saímos do lugar”, responde outro profissional.

No grupo, também se lamenta a suspensão, por tempo indeterminado, das férias de médicos e enfermeiros. A medida já havia sido adotada ano passado, afetando agora novamente profissionais de saúde que, sobrecarregados, estão há mais de dois anos trabalhando sem parar. Desde o início da pandemia, pelo menos 1.199 médicos e enfermeiros brasileiros morreram de Covid-19.

— Parece que ninguém pensa em nós. No começo tinha aquele lance de bater palma, de nos homenagear. Hoje não tem nada disso, e estamos trabalhando no limite, físico e psicológico — afirma Bruno Ishigami, infectologista na Clínica do Homem, no Recife.

CEMITÉRIOS CHEIOS

Porto Velho, em Rondônia, viu o número de sepultamentos crescer 80% entre janeiro e fevereiro e, por isso, negocia a compra de 1.800 gavetas em cemitérios particulares para enterrar os mortos vítimas da doença.

O impacto da piora da situação chegou às UTIs aéreas. Algumas empresas registram, de 2019 para o ano passado, um aumento de até 600% no serviço de remoção de pacientes com a atual crise sanitária:

—Houve um momento em que todo o setor de UTI aérea estava saturado, com disponibilidade para contratação de voos somente para sete, dez dias à frente — conta Phelipe Augusto, piloto-chefe da Brasil Vida Táxi Aéreo. Na Líder Taxi Aéreo, que registra crescimento de 400%, só não há agora falta de aviões porque, com os hospitais lotados, não há para onde levar os pacientes, segundo a diretora da empresa, Bruna Assumpção. Nada disso explica ou conforta dramas pessoais que se acumulam. Às 22h23 de quinta-feira, a bancária Daiane Varella, de 32 anos, enviou ao namorado Thales Barreto, de 34, um recado pelo WhatsApp: “Amor, vou intubar. Não sei quanto tempo”. Quando ele pediu detalhes, a namorada conseguiu enviar mais uma mensagem. Foi a última antes de entrar na UTI do hospital Mãe de Deus, na capital gaúcha.

— Ela não está intubada porque foi em festa clandestina —diz Barreto.

— Ela está intubada porque foi trabalhar. O presidente diz que é mimimi. Não é mimimi, não.