O Globo, n.31989 , 07/03/2021. Economia p.29

 

Precarização

Henrique Gomes Batista

07/03/2021

 

 

No mercado de trabalho, tecnologia do século XXI convive com condições do século XIX

A evolução tecnológica deu impulso à geração de riquezas no planeta, ao mesmo tempo em que provocou uma revolução no mercado de trabalho. A pandemia de Covid-19 acelerou em décadas esse processo, gerando um verdadeiro tsunami no mundo do emprego, em todos os níveis de qualificação. No Brasil, isso se soma a um cenário de precarização, em que só o trabalho informal cresce.

— Há um dilema: estamos trabalhando com tecnologia do século XXI, mas em condições de trabalho que são similares às do século XIX — afirmou ao GLOBO Vinícius Pinheiro, diretor regional da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para América Latina e Caribe.

POLÍTICAS PÚBLICAS

O fenômeno é global. Mas na América Latina, onde o número de desempregados ou alijados da atividade econômica atingiu 55 milhões, o impacto pode ser mais cruel. A quantidade de pessoas atuando em plataformas como Uber, Rappi ou iFood na região quintuplicou no ano passado. Essas pessoas enfrentam maior risco de exposição ao novo coronavírus, jornadas extenuantes, falta de seguridade social e baixo rendimento e ausência de parâmetros e direitos.

— É possível comparar essas condições com a forma como se trabalhava na mineração do século XIX, quando não havia a limitação de horas de trabalho, você recebia uma miséria e ainda estava sujeito a ser contaminado por todos os agentes nocivos da mineração —disse Pinheiro. Esta é a realidade de Guilherme Serra, de 29 anos, que perdeu o emprego no início da pandemia. Ele viu em um aplicativo para motoristas uma oportunidade. Mas a rotina não é fácil: seu expediente costuma começar às 5h e só termina por volta das 21h. Serra ainda tem de lidar com as dificuldades de uma relação de trabalho diferente: —A gente não tem um telefone de contato direto, por exemplo. É só para quem tem uma nota e uma taxa de aceitação muito alta. .

Para Jerry Davis, professor de Economia da Universidade de Michigan e pesquisador na Universidade de Stanford, ambas nos Estados Unidos, já se pode pensar em um futuro no qual todo trabalhador será uma microempresa. Isso representa a reversão de uma tendência histórica que apontava para mais direitos, maiores salários e menor carga ho rá riaà medida que os países enriqueciam. Agora, busca-se o menor custo possível, onde quer que ele esteja, gerando um fenômeno de precarização global.

— A Covid está sendo um desastre para o trabalho. Para empregos de colarinho branco, o “novo normal” do trabalho remoto gera concorrentes potenciais no mercado de trabalho global. Para o trabalho que deve ser feito pessoalmente, as plataformas substituem “empregos” por “tarefas” —disse Davis. Pinheiro, da OIT, observa ainda que, com o home office, há o risco de as pessoas trabalharem mais tempo do que seria o ideal, em espaço físico inadequado, sem separar a vida pessoal e profissional:

— Há uma outra pandemia, uma pandemia mental e emocional. A falta de socialização de quem vive sozinho, a dificuldade em separar o trabalho do ambiente familiar e as jornadas exaustivas estão gerando um estresse pós-traumático que será pago no futuro. O governo precisa adotar políticas públicas para o trabalho, tanto de valorização do salário mínimo como de qualificação profissional, afirma Aguinaldo Maciente, pesquisador do Ipea. Ele ressalta que, por mais que algumas empresas ou setores se esforcem, não conseguem substituir o peso do governo:

—Além disso, é preciso criar proteção mínima para estes trabalhadores, evitar práticas degradantes. Políticas de trabalho são fundamentais para que a recuperação da economia seja mais forte e inclusiva, e não desigual — disse Maciente, ressaltando que suas opiniões não refletem a do instituto.

SEM INVESTIR EM EDUCAÇÃO

Tanto Pinheiro como Davis defendem normas para minimizar os impactos negativos dessa revolução no mercado de trabalho. Um exemplo é a decisão do Reino Unido que reconheceu direitos trabalhistas de um grupo de motoristas que acionou o Uber na Justiça. Nos EUA, discute-se o aumento do salário mínimo. Rodrigo Carelli, professor da UFRJ e procurador do Trabalho, lembra que, no passado, o Brasil perdeu espaço para a Coreia do Sul, e agora vê o processo se repetir com a China. Em ambos os casos, não por causa de salários, mas pela falta de um plano estratégico com qualificação e inovação.

—A mão de obra chinesa já é mais cara que no Brasil, o mesmo ocorre na Argentina. A Fábrica da Ford não saiu do Brasil somente devido ao nosso custo trabalhista. Não é barateando a mão de obra que você fará uma grande nação. Aqui não temos investimento nem em educação nem em tecnologia —disse. Clemente Ganz, economista e assessor do Fórum das Centrais Sindicais, alerta que as mudanças no trabalho demandam uma visão global:

— O impacto disso é gigantesco. (Colaborou Bernardo Yoneshigue, estagiário, sob a supervisão de Claudia dos Santos)

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Mudança pode afetar Previdência a longo prazo

Henrique Gomes Batista

Bernardo Yoneshigue

07/03/2021

 

 

Informais tendem a não pagar contribuição, impactando as contas do INSS. Eles também terão mais dificuldade para se aposentar

A Previdência Social também é afetada pelas mudanças no mercado de trabalho. Aguinaldo Maciente, pesquisador do Ipea, lembra que o avanço do trabalho via plataformas como aplicativos de mobilidade tem o potencial de ampliar o trabalho informal, o que pode afetar o equilíbrio das contas da Previdência, ameaçando os ganhos da reforma aprovada em 2019. O impacto é tanto para o pagamento atual dos benefícios, que saem da contribuição de todos os trabalhadores, como para o futuro, pois esses profissionais terão mais dificuldade em se aposentar.

—Esse não é um problema apenas do Brasil. Vários países estão debatendo isso: como estimular a contribuição previdenciária de pessoas jurídicas, M EI( microempreendedor individual ), trabalhadores por conta própria. Como fica a situação de pessoas com renda mais esporádica? — disse Maciente, ressaltando que sua visão não reflete ado instituto.

O motorista de aplicativo Guilherme Serra, que perdeu o emprego formal no ano passado, é um exemplo: ele não está contribuindo para o INSS.

A combinação de transição tecnológica e pandemia também afeta desproporcionalmente os mais jovens. Ma ciente lembra que muitos estão perdendo momentos importantes de formação educacional e terão dificuldade para entrar no mercado de trabalho:

— A evolução da educação brasileira não segue a velocidade da evolução tecnológica, e a pandemia agravou isso ainda mais, principalmente para os que estão saindo do ensino médio, técnico ou superior. Muitos estudos indicam que quando um jovem demora muito entre terminar seus estudos e conseguir um trabalho, há danos permanentes em sua trajetória laboral. Marcello Mussi, sócio da PwC Brasil, aponta ainda os impactos comportamentais decorrentes das transformações tecnológicas. Ele ressalta que questões como carreiras e incentivos profissionais estão sendo redefinidas e que as normas trabalhistas terão de ser atualizadas em todo o mundo. Mas há quem consiga fazer bem essa transição.

A fotógrafa Débora Nisenbaum, de 28 anos, decidiu investir na área tecnológica. Na pandemia, começou a carreira de desenvolvedor de front-end (elaboração da parte visível de aplicativos e sites). Mas ela sabe que seu caso é exceção:

—Precisar ficar em casa me ajudou no sentido de que tive tempo disponível para estudar com mais tranquilidade. Mas estou numa posição privilegiada.