O Globo, n.31991 , 09/03/2021. Editorial, p.3

 

A suprema guerra

Merval Pereira

09/03/2021

 

 

O debate político desde a divulgação pelo “Intercept Brasil” das conversas entre os procuradores de Curitiba e deles com o então juiz Sergio Moro, fruto da invasão por hackers de aplicativos de mensagem de autoridades em Brasília, desenvolveu-se entre os favoráveis ou contrários à Operação Lava-Jato, no meio político e também no Supremo Tribunal Federal (STF).

Embora as conversas não possam servir como prova, pois conseguidas de maneira ilegal, elas foram divulgadas amplamente, mesmo com a autorização do Supremo, e certamente influenciaram a mudança do ambiente político. Essa guerra de narrativas encontrou na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) sua representação nas pessoas dos ministros Gilmar Mendes, contrário, e Edson Fachin, favorável.

O que aconteceu ontem foi apenas mais uma etapa dessa disputa, que pode ter hoje, na reunião da Segunda Turma, seu prosseguimento. O ministro Gilmar Mendes estaria disposto a levar para o plenário da Turma a questão da parcialidade de Sergio Moro e provavelmente ganharia, pois, com a chegada do ministro Nunes Marques, a maioria contra a Lava-Jato ficou fixada antes mesmo de qualquer julgamento.

Daí o movimento brusco de Fachin de encaminhar os processos contra Lula para a Justiça Federal de Brasília, preservando os atos de investigação e acusação, mas anulando as decisões. Os movimentos de Gilmar Mendes e Edson Fachin têm pouco a ver com o ex-presidente, que acabou se beneficiando desse embate. Gilmar quer acabar com a Lava-Jato, que já apoiou enfaticamente, e Fachin quer preservá-la, mesmo abrindo mão dos processos contra Lula.

 

Se a votação da parcialidade de Moro fosse referendada pela Segunda Turma, todos os processos da Lava-Jato estariam em xeque. Nada é mais importante do que analisar a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos tempos no país para definirmos seu papel neste momento político. A suprema guerra se desenvolve às claras, nas reuniões plenárias, e sobretudo nos bastidores.

Fachin tentou uma manobra, colocando no plenário virtual uma ação da defesa de Lula pela parcialidade de dois ministros do Tribunal Regional Federal (TRF-4) que avalizaram a condenação de Lula no caso do sítio de Atibaia. Como as razões aventadas eram muito frágeis, provavelmente a defesa do ex-presidente perderia, o que levaria Fachin a argumentar que, como o TRF-4 havia julgado Lula, e inclusive aumentado sua pena, não poderiam ser anuladas as decisões de Moro.

O risco era grande, e a defesa de Lula retirou o caso do plenário virtual “para aperfeiçoá-lo”. O movimento de Fachin ontem talvez não impeça a decisão de Gilmar Mendes de levar à reunião de hoje a questão da parcialidade de Moro. Ele estaria disposto a arrostar a decisão de Fachin, e a disputa pode ter que ser resolvida pelo presidente Luiz Fux, adepto da Lava-Jato.

A pressão política para que o ex-juiz Moro seja julgado é grande, mesmo com a decisão do relator da Lava-Jato de considerar extinta a causa, por falta de objeto. Fachin alegou na sua decisão que, embora a questão da competência já tivesse sido suscitada indiretamente, “esta é a a primeira vez que o argumento reúne condições processuais de ser examinado, diante do aprofundamento e aperfeiçoamento da matéria pelo Supremo Tribunal Federal”.

Ele se refere à jurisprudência que teria sido alterada nos últimos meses, restringindo o alcance da competência da 13ª Vara Federal e enviando para Varas de todo o país, e para Tribunais Eleitorais (TREs), os processos iniciados pela Lava-Jato, contra seu voto. Se a Justiça do DF confirmar as condenações e Lula for novamente condenado na segunda instância, voltaria a ser inelegível, mas isso dificilmente acontecerá, pois os crimes já devem estar prescritos, ou quase, e ninguém vai assumir o mesmo desgaste de conduzir essa batalha da Lava-Jato.

Nada que saiu de Curitiba, fora os processos do Rio de Janeiro, avançou. Os processos que não tenham vínculos claros com a Petrobras serão anulados. E Lula provavelmente será o candidato do PT em 2022. A não ser que o inesperado volte a fazer uma surpresa, como sói acontecer no Brasil.

Edson Fachin, que era ligado ao PT antes de ser indicado para o STF, beneficiou Lula, mas esse não era seu objetivo principal. Gilmar Mendes, que estava rompido com Lula, que fora seu amigo, também ajudou a libertar o ex-presidente.

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Fachin devolve Lula ao jogo eleitoral em 2022

09/03/2021

 

 

O ministro do Supremo Edson Fachin redesenhou ontem não apenas o futuro jurídico da Operação Lava-Jato, mas provocou um abalo político que terá repercussões até 2022. Anulou as decisões do ex-juiz Sergio Moro em quatro processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva desde a aceitação da denúncia. Decidiu que Moro não tinha competência para julgá-lo nem condená-lo, pois seu escopo de ação estava limitado a suspeitas relacionadas à Petrobras. Despachou à Justiça de Brasília quatro processos que tramitaram em Curitiba e julgou não terem relação alguma com a estatal. Preservou apenas o trabalho de instrução realizado pela polícia e pelo Ministério Público. O novo juiz decidirá o que fazer. Pode nem sequer aceitar as denúncias.

O primeiro efeito da decisão se dará no julgamento, na Segunda Turma, do pedido de suspeição de Moro pela defesa de Lula. Fachin deu por extintas as causas alegando parcialidade de Moro. O segundo efeito é que, se a decisão resistir ao recurso da Procuradoria-Geral da República, Lula recuperaria seus direitos políticos e poderia se candidatar em 2022.

Não é difícil entender a intenção de Fachin, relator da Lava-Jato e ministro conhecido pela posição favorável à operação. A derrota prevista para o julgamento de Moro na Segunda Turma poderia ter consequências ainda mais nefastas. Primeiro, o processo inteiro contra Lula seria anulado (na decisão, Fachin não anulou as provas colhidas na fase de instrução). Segundo, uma decisão que referendasse promiscuidade entre Moro e os procuradores da Lava-Jato com base na troca de mensagens vazadas ilegalmente poderia ter repercussão em dezenas de outros processos e pôr a perder todo o trabalho da operação.

Fachin procurou preservar o que era possível. Ainda que seja um golpe forte na Lava-Jato, a decisão poupa Moro de dores de cabeça futuras, com a repercussão de uma decisão desfavorável da Segunda Turma noutros processos. Nas últimas semanas, Moro vinha sofrendo seguidas derrotas no Supremo no embate para invalidar o uso das mensagens como prova. A decisão de Fachin poderá tornar irrelevante a questão.

Em seu voto, Fachin lembra que que, em 2015, quando já se multiplicavam as denúncias sobre o esquema montado na Petrobras, o plenário do Supremo decidiu que o então relator da Lava-Jato, ministro Teori Zavascki, assim como Moro, só receberia casos que envolvessem a Petrobras. Processos que chegaram a ir para Curitiba já foram distribuídos à Justiça de outros estados (caso do que envolve a refinaria Abreu e Lima, retirado de Curitiba e enviado ao Recife). É possível que o plenário do Supremo tenha de referendar a decisão de Fachin, que extrapola o esperado no julgamento de embargos da defesa. Seria uma garantia de maior legitimidade.

A principal consequência dela, porém, já está na mesa. A mera possibilidade de Lula se candidatar em 2022 fez derreter os mercados. Isso porque permitiria, em tese, que Jair Bolsonaro repetisse a polarização ideológica que o levou à vitória em 2018, contra o petista Fernando Haddad. Aumenta bastante o desafio para a oposição de centro.