O Globo, n.31992 , 10/03/2021. Sociedade, p.10

 

Cláusulas abusivas

Constança Tatsch

10/03/2021

 

 

Especialistas criticam contrato da Fiocruz com AstraZeneca, que pode ser fator em atrasos na vacinação

Em setembro de 2020, a Fiocruz assinou o contrato de encomenda tecnológica coma farmacêutica anglo sueca Astra Zene capara a produção da vacina contra a Covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford. Passados seis meses, no entanto, muitos aspectos do acordo seguem sigilosos. Segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO que tiveram acessoa parte ou à íntegra do documento, ele contém “cláusulas abusivas” — que podem, inclusive, colaborar para o atraso na vacinação no país.

— O documento assinado prevê prazos muito largos, oferecendo margem para alterações pautadas pela política — diz o professor de Saúde-Públicada USP Fernando Aith, Cepedisa/USP,centro pioneiro de pesquisa sobre o direito da saúde no Brasil.

— Por exemplo: há uma entrega de vacinas prevista no contrato para julho, mas fazem um acordo de cavalheiros, na palavra, que ela será feita antes, em janeiro. Na hora do vamos ver, o que vale, no entanto ,é ocont rato. Fica nebuloso. Se estivesse mais claro no contrato, o Plano Nacional de Imunização (PNI) poderia ter bases mais concretas.

O país já vive as consequências do atraso no calendário da vacinação no pior momento da pandemia. A própria Fiocruz informou na semana passada que entregará em março 3,8 milhões de doses produzidas na instituição a partir de insumos vindos do exterior. Mas seu calendário inicial prometia a entre gade 15 milhões de doses neste mês. O atraso ocorreu por uma falha em uma máquina que tampa os frascos da vacina.

Professor do Centro de Direito da Universidade de Georgetown (EUA), Matthew Kavanagh é um duro crítico dos acordos de exclusividade, que têm sido praxe entre empresas que criam as vacinas de Covid-19 e instituições que vão produzi-las. É ocas otanto do trato entre AstraZeneca e Fiocruz (que só pode produzir o imunizante de Oxford) como o da chinesa Sinovac como Butantan (ques ó vai produzira CoronaVac).

— Licenças exclusivas são antiéticas para aboa saúde pública — afirma Kavanagh, também diretor do Instituto O’Neill de Direito Sanitário Nacional e Global. — E são responsáveis diretas para que hoje exista um fornecimento de vacina artificialmente limitado, que empaca planos de vacinação.

Após fazer uma requisição através da Comissão Externa de Enfrentamento à Covid-19 da Câmara dos Deputados, o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT-SP) teve acesso à íntegra do contrato.

— Ele tem cláusulas abusivas. Faltou apoio do governo federal para negociar, em defesa da Fio cruz, acor domais amplo. Não éà toa que a embaixada do Reino Unido acompanhou tudo de perto. O embaixador foi a reuniões no Congresso, pois essas negociações são estratégicas —afirma.

EXCLUSIVIDADE

O ex-ministro elencou os três pontos que considera mais críticos no documento, e oprime ir odele sé justamente a exigência de exclusividade. Outro éa cláusula que proíbe a Fio cruz de comercializa reexportara vacina, inclusive para fundos internacionais, como a Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial da Saúde:

— Fiocruz e AstraZeneca argumentam que a transferência de tecnologia é “aberta”, mas isso não está escrito no contrato. Ora, se fosse aberta, a Fiocruz poderia exportar e comercializar dentro dopaís — dizo ex-ministro.— Precisamos suprir o mercado nacional, mas e depois? O mundo seguirá precisando de vacinas. Poderíamos expandira produção, posicionara Fundação em outros países, ampliara tecnologia. Faltou visão estratégica.

Padilha aponta também a ausência de clareza sobre o preço do imunizante:

—Um acordo de transferência de tecnologia dura anos, qual o preço por dose ao longo desse período? A empresa oferta um preço inicial pois vivemos hoje a pandemia, mas quer rever depois. A sociedade deveria ter acesso aos valores.

Aith concorda. E diz que, na parte do contrato tornada pública, não há especificação de preço, apenas que o índice de correção as erus adoéo IGP-M, quando “geralmente se usa IPCA ou a taxa Selic”.

O sigilo que envolve os anexos dos contratos das farmacêuticas com parceiros públicos também dão dor de cabeça aos especialistas. Aith argumenta que contratos do gênero deveriam ser abertos e transparentes, justamente por envolver dinheiro público:

— AstraZeneca e Fiocruz alegam que são cláusulas que envolvem sigilo industrial. Masa Fio cruz, assim como o Butantan, são institutos públicos, as transações envolvem dinheiro público, deveriam ter contratos transparentes.

A responsabilidade sobre efeitos adversos, ponto controverso na negociação coma Pfizer, também está presente no contrato coma Astra Zen eca, confirma Padilha. Os especialistas ouvidos pelo GLOBO não consideram este, no entanto, aspecto tão crítico.

—Essa exigência está sendo imposta a vários países. No Brasil, isso se justifica ainda mais porque o próprio presidente Jair Bolsonaro levanta suspeitas infundadas sobre riscos, gerando insegurança na indústria —afirma Aith.

Kavanagh lembra que também se questionou o contrato firmado pela União Europeia coma Astra Zen eca. Atraso use a entregadas quantidades prometidas de vacinas e não se cumpriu o cronograma inicial. E a falta de transparência contratual foi igualmente destacada, já que apenas parte do contrato foi tornada pública:

—Aquisições com dinheiro público devem ser feitas por meio de contratos públicos, para evitar corrupção e ver como nossos impostos são gastos e evitara corrupção. Atran spa rênciaéo alicerce dabo a governança e não devemos ser solicitados a trocá-la pelo acesso às vacinas —diz.

Em nota, a AstraZeneca informou que vem trabalhando com diversos países e entidades para tornara vacina acessível, de maneira justa e igualitária, sem lucro durante a pandemia. Eque o contrato firmado “segue a Lei da Transparência no Brasil”, com cláusulas sigilosas referentes à propriedade industrial e a “demais assuntos da negociação, classificados de acordo coma Lei 12.527/2011 e seu Decreto 7.724/12”, que relaciona informações sob restrição de acesso, observados grau e prazo de sigilo.

A Fiocruz argumentou que “nenhum produtor no mundo está produzindo hoje duas vacinas diferentes contra aC ovid-19”p oi sopro cessoé“extre mamente complexo ”. Eque as entregas de insumos para a produção de 100,4 milhões de doses até julho “tiveram seus pagamentos antecipados”.

A Fiocruz também afirma que o objeto do contrato de encomenda tecnológica está limitado a 100 milhões de doses (que serão produzidas nacionalmente e entregues no segundo semestre), “totalmente destinadas ao Ministério da Saúde e ao SUS”. Eque, caso haja produção excedente, “será possível avaliara destinação para outros territórios ”.