O Globo, n.31992 , 10/03/2021. Mundo, p.22

 

Guerra dos imunizantes

Eliane Oliveira

Vivian Oswald

10/03/2021

 

 

Brasil deve se manter contra quebra de patentes de vacinas anti—Covid na OMC

O pedido da Índia e da África do Sul de suspensão de patentes e outros dispositivos de propriedade intelectual sobre vacinas e medicamentos para a Covid-19 durante a pandemia volta a ser discutido na Organização Mundial do Comércio (OMC) hoje. A expectativa é de que o Brasil, que vive o pior momento da pandemia, mantenha sua posição contrária à proposta, que tem por objetivo dar escala à fabricação desses produtos, hoje concentrada em um punhado de grandes companhias farmacêuticas, baseadas sobretudo em países desenvolvidos — a maioria dos quais já garantiu dezenas de milhões de doses de vacinas para suas populações.

Até agora, a iniciativa foi rejeitada exatamente pelos países ricos, e integrantes do organismo consideram “curiosa” a posição do Brasil, a única nação em desenvolvimento neste grupo. O argumento brasileiro é que o acordo Trips (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio) da OMC já prevê a possibilidade do chamado “licenciamento compulsório ”— equivalente à suspensão de patentes, masque pode ser feito por cada país individualmente — de remédios em emergência sanitárias. Mesmo dependente da importação de imunizantes da Índia, o governo brasileiro considera a proposta “mera sinalização política”.

A proposta tem sido copatrocinada pelas delegações da União Africana e pelo grupo dos países de menor desenvolvimento, além de Paquistão, Bolívia, Venezuela, Argentina, Cuba e Egito, entre outros. Quando um pedido do tipo é encaminhado ao Conselho Trips —responsável na OMC pelo monitoramento do acordo — o prazo para a discussão é de 90 dias.

Era para o assunto ter sido resolvido no final de janeiro. No entanto, sem um consenso — todas as decisões devem ser acatadas pelos 164 países-membros da OMC — o debate tem sido postergado. Esta já é a sexta reunião, entre encontros formais e informais, para discutir o tema. Em anos normais, o Conselho Trips se reúne de duas a três vezes para tratar da agenda geral.

EXPECTATIVA POR MEIO TERMO

Negociadores não esperam mudanças radicais de posições no encontro, que vai até amanhã. Mas ainda há esperança de que se chegue a um acordo nome iodo caminho. A nova diretora-geral da OMC, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, é entusiasta de uma terceira via. Isso significaria que governos e empresas farmacêuticas poderiam chegar a um entendimento entre si, sem que necessariamente se mudem as disposições do Trips.

Ontem, representantes da indústria, governos, ONGs e academia se reuniram em Londres para discutir uma saída. Participantes do encontro não descartam um entendimento paralelo ao processo na OMC. Austrália, Canadá, Chile e Colômbia já haviam se mostrado abertos a negociar. Eles estão em um grupo de sete países que ontem enviou uma carta a Okonjo-Iweala pedindo que negocie com os fabricantes de vacinas para aumentara produção.

A própria diretora-geral pediu ontem ação urgente para aumentara produção de vacinas em países em desenvolvimento, dizendo que 130 nações ainda estavam esperando receber imunizante seque fábricas poderiam ser habilitadaspara produzi-los em seis ou sete meses.

Para um negociador que acompanha os debates, o Brasil poderias e juntara esse grupo. Na visão dele, o Brasil foi contra a proposta original para “tentar agradar a uma certa pessoa que já não está no poder nos Estados Unidos, a fim de reforçar seu pleito de ingresso na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico”.

OMS APOIA MOVIMENTO

No primeiro encontro, em outubro, o Brasil tomou a palavra e foi veementemente contrário à iniciativa de Índia e África do Sul. Na reunião de janeiro, enquanto negociava dois milhões de doses de vacinas que seriam trazidas da Índia para imunizar a população brasileira, o país se absteve de comentários.

Diante dos mais de 2,6 milhões de óbitos e 117 milhões de casos de Covid-19 no mundo, o diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, defende a suspensão das patentes das vacinas, argumentando que o mundo  só estará protegido quando todos estiverem imunizados. Em artigo na sexta-feira, ele disse que a medida permitiria a mais países fabricar e vender cópias baratas de vacinas que foram inventadas em outros lugares.

No entanto, o lobby das grandes farmacêuticas é forte. Também na sexta, pesos-pesados da indústria enviaram uma carta ao presidente americano, Joe Biden, na qual pedem que os EUA rejeitem a proposta. Assinada por 30 executivos, a carta alerta contra “esforços de minar proteção de propriedade intelectual que são essenciais para a resposta da indústria e colaborações que estão em curso durante a pandemia”.

Segundo as gigantes farmacêuticas, Índia e África do Sul argumentam “sem evidência” que as regras de propriedade intelectual dificultam a resposta global à pandemia. “Apesar do imenso desafio de produção de escala de novas tecnologias, estima-se que os fabricantes de vacinas contra Covid-19 vão fornecer aproximadamente 10 bilhões de doses até o final de 2021, o suficiente para vacinar toda a população global apta”, diz o documento.

‘LADO CERTO DA HISTÓRIA’

Fontes do governo brasileiro afirmam que o Brasil, que em 2007 recorreu ao Trips para decretar o licenciamento compulsório do efavirenz, medicamento para Aids, não mudou de posição sobre patentes. O Trips já possibilita a medida, e a chamada Declaração de Doha estabelece diretrizes para a interpretação do Trips“à luz de objetivos de saúde pública ”, dizem.

A avaliação em Brasília é que uma eventual moratória das patentes não resolverá os problemas de acessoa medicamentos e pode aumentara desigualdade de acesso entre países com diferentes capacidades de produção.

No entanto, para a organização internacional de direitos humanos Human Rights Watch, apr ovara propost apoderá facilitar os procedimentos internos em cada país, já que não exigirá o desgaste de iniciativas individuais. A ONG avalia que as flexibilidades existentes não são suficientes para oferecer uma solução rápida e global para conter a pandemia de Covid-19.

— O Brasil deveria estar do lado certo da História, mudar de posição e se unir aos governos que estão apoiando a suspensão temporária das regras de propriedade intelectual — disse Anna Livia Arida, diretora-adjunta da HRW no Brasil.