O Globo, n.31993 , 11/03/2021. Sociedade, p.9

 

Epicentro da pandemia

Ana Lucia Azevedo

Rafael Garcia

11/03/2021

 

 

Brasil bate recorde e registra mais de 2,3 mil mortes por Covid-19 em um dia

O Brasil é, agora, o epicentro global da tragédia da Covid-19. O país registrou, ontem, 2.349 mortes pela doença num único dia. É o pior número de toda a pandemia, marca que foi alcançada exatamente a um dia de completar um ano em que ela foi oficialmente decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Até então, os Estados Unidos eram o único país que havia registrado mais de 2 mil mortes pelo vírus em um único dia, sem que houvesse represamento de dados. A marca foi atingida em 88 ocasiões diferentes, 20 durante a primeira onda da pandemia, entre março e abril de 2020, e outras 68 de novembro até a semana passada. Os EUA, porém, estão em tendência de queda agora, diferentemente do Brasil. A Índia, o México e a Argentina também chegaram à marca, mas, no caso deles, havia dados represados a serem computados, ou seja, os picos foram pontos fora da curva.

No Brasil, o registro é consistente com o histórico recente, com seis dias de superação de 1.500 óbitos nos últimos dez dias. O país segue na contramão do resto do mundo, como avanço da doença descontrolado e em franco crescimento. O Brasil também superou ontem os EUA, que têm uma população 55,9% maior, no número de novos casos diários e na média móvel semanal de mortes. Ontem, segundo o consórcio de veículos de imprensa, foram 80.955 novos infectados, puxados sobretudo pela explosão de casos em São Paulo e nos estados do Sul.

Para a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, a marca de 2 mil mortes em um dia era esperada.

— A gente ainda está colhendo consequências de Natal, Ano Novo, férias e Carnaval, um em cima do outro, com as pessoas se expondo mais — afirma a pesquisadora.

BRASIL É A NOVA CHINA

Em 11 de março de 2020, a China era o foco da preocupação planetária. Agora, o Brasil, recordista de mortos, sem controle da transmissão, sem vacinas suficientes e berço de umadas mais perigosas variantes do coronavírus, a P1, é a nova Chinano que diz respeito à pandemia.

Ontem, Carissa F. Etienne, diretora da Organização Panamericana da Saúde (Opas ), disseque a instituição está“preocupa dacoma situação do Brasil”.

Primeiro a vislumbrar, no início de novembro, que o país entrava numa segunda onda, Domingos Alves, pesquisador da USP de Ribeirão Preto e do portal Covid-19 Brasil, diz que o avanço de casos e mortes tem se dado em ritmo mais acelerado do que o previsto:

—Não adianta só oferecer leitos quando as pessoas já estão morrendo na fila. É preciso conter o vírus.

Para a epidemiologista Gulnar Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Saúdo Coletiva, os números atuais são um reflexo do “fracasso” da resposta do governo federal à pandemia.

— Não era para o Brasil estar nesta situação. Essa quantidade de óbitos é inaceitável Agente já vinha alertando há muito tempo e dizendo que viria acrescer—lamenta.

A maior par tedo planeta começa ave rum horizontecomas vacina se a redução dopas soda pandemia em países antes duramente atingidos, como Reino Unido, EUA, Portugal, Itália e Espanha. No Brasil, no entanto, os próximos dias serão bem duros: integrantes do Ministério da Saúde avaliaram, de acordo com reportagem do Valor Econômico da última sexta-feira, que o Brasil ainda registraria, nas duas semanas seguintes, mais de 3 mil mortes por dia.

Com 1.645 óbitos diários registrados na última semana e em tendência de alta, o Brasil agoraéopaísm ais atingido pela pandemia. Os EUA, o país com maior número de casos, vêm reduzindo drasticamente a transmissão desde que Joe Biden assumiu a presidência. A média móvel de março caiu 75% em relação a janeiro.

O Brasil não só vacina pouco —apenas 5,48% da população foi vacinada — como é o país em que o vírus mais avança.

— Era para termos pelo menos de 40 milhões a 50 milhões de pessoas vacinadas. Em vez disso, temos um um caos — lamenta a sanitarista e epidemiologista Carla Domingues, que esteve à frente do Programa Nacional de Imunizações (PNI) por oito anos (2011-2019).

O Brasil se tornou o exemplo maior de tudo o que poderia dar errado, diz Alves:

— A sociedade se espelha em seus governantes. Nos EUA, a pandemia caiu porque o novo governo deu o bom exemplo. Aqui, temos o contrário, um ano de genocídio.

O Brasil, que já foi referência em vacinação no mundo, se mantido o atual ritmo, levará 949 dias o umais de dois anos e meio, para imunizar toda a população, segundo o MonitoraCovid-19, da Fiocruz. Ontem, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, reduziu mais uma veza previsão de vacinas que serão distribuídas a estados e municípios em março: ele citou, em discurso, uma previsão entre 22 e 25 milhões de doses. Na segunda-feira, havia dado uma estimativa de 25 a 28 milhões para o mês.

O ano da pandemia viu a China controlar o vírus em seu território e se tornar uma das maiores fabricantes de vacinas. Viu os EUA, até março de 2020 considerados um dos países mais preparados do mundo, tornarem-se o epicentro da pandemia. Porém, com mudanças de política e vacina, os EUA viraram o jogo. A epidemiologista brasileira Márcia Castro, professora da Universidade Harvard, disse em entrevista ao podcast Ao Ponto que aposse do presidente Bidenen volveu uma “mudança radical de postura ”, e os EUA começaram a perdera semelhança com o Brasil de Bolsonaro.

Natalia Pasternak diz que a pressão de governadores e prefeitos pode surtir efeito no país, mas o governo federal precisa agir em conjunto:

—Este cenário coloca o Brasil num aposição de risco sanitário global. Um país do tamanho do nosso coma pandemia descontrolada pode virar uma grande sopa de novas variantes preocupantes do vírus, com consequências geopolíticas, sociais e econômicas.