O Globo, n.31993 , 11/03/2021. Economia, p.15

 

Ajuste desidratado

Manoel Ventura

Bruno Góes

Geralda Doca

11/03/2021

 

 

 Recorte capturado

Diante de risco de perda maior, Câmara faz acordo que protege servidor

Diante da mobilização de partidos de oposição para retirar a maior parte das medidas de ajuste fiscal da proposta de emenda à Constituição (PEC) do auxílio emergencial, deputados alinhados à equipe econômica fecharam ontem um acordo no qual o governo abrirá mão do congelamento de promoções e progressões no funcionalismo da União, estados e municípios, mesmo em caso de crise nas contas públicas. A flexibilização, que vale para todas as categorias de servidores, foi apoiada pela chamada bancada da bala e significa uma vitória para o presidente Jair Bolsonaro, que articulou nos últimos dias para blindar profissionais de segurança do pacote de contenção de gastos.

PERDA DE R$ 1,5 BI, DIZ LÍDER

A desidratação deve ter um impacto bilionário. Nas contas do líder do governo, Ricardo Barros (PP-PR), a alteração reduz em R$ 1,5 bilhão economia prevista em um ano em caso de aprovação do texto sem alterações. A estimativa é difícil de ser feita, porque depende de fatores como o número de estados em crise, mas economistas calculam que a conta poderia ser ainda maior. A MAG consultoria, por exemplo, estima que a proibição à progressão automática teria impacto anual de até R$ 10 bilhões levando em conta União e todos os estados e municípios.

— Isso tem impacto de R$ 1,5 bilhão. Mas dentro do conjunto da P EC, com gatilhos e contrapartidas, é aceitável esse acordo —disse o líder.

O recuo da ala governista na Câmara ocorreu um dia após deputados aprovarem em primeiro turno uma versão da PEC sem alterações, como encaminhada pelo Senado. A votação, que só acabou de madrugada, foi considerada uma vitória para a equipe econômica, que atuou ao longo da terça-feira para preservar as medidas de ajuste.

O acordo de ontem foi costurado após o PT apresentar uma proposta de alteração que acabava com todas as medidas de contenção de gastos impostas a estados e municípios em que a despesa superasse 95% das receitas — um indicador de emergência fiscal. A retirada desse capítulo da PEC faria com que o projeto perdesse a “espinha dorsal”.

Para evitar que isso ocorresse, ficou acertado que os deputados flexibilizariam apenas o trecho desse pacote que proíbe promoções e progressões — que ocorrem periodicamente, de acordo com o tempo de serviço. Assim, o combinado é manter outras travas, como a proibição de reajustes salariais e vedação de concursos públicos, com exceção dos processos para repor cargos vagos.

A concretização do acordo ficou para depois da votação da PEC em segundo turno, o que ainda não tinha ocorrido até as 22h30m de ontem. Em nota, a Frente de Segurança Pública comemorou o acordo, mas salientou pontos que não foram contemplados com o acerto, como a possibilidade de recomposição da inflação nos salários em momentos de crise. Também citou a questão de concurso público para reposição de cargos vagos, o que já era previsto na PEC, além de “investimentos em segurança”, o que não foi abordado no plenário.

POLICIAIS INSATISFEITOS

Apesar do acordo ter sido anunciado pelo líder do governo, a equipe econômica foi contra flexibilizar ainda mais a PEC —que já fora desidratada no Senado e em votação na Câmara. O argumento usado por técnicos do time do ministro da Economia, Paulo Guedes, é que promoções e progressões automáticas têm impacto forte nas contas e não podem ser controladas por governadores e prefeitos. Enquanto aumentos de salários só são dados caso o gestor autorize.

A negociação também não agradou a policiais. Em nota, a União dos Policiais do Brasil (UPB) informou que não foi consultada sobre o acerto e diz que ele não contempla nem faz justiça aos policiais e profissionais da segurança pública. Na manhã de ontem, antes da votação, o vicepresidente Hamilton Mourão disse que a categoria precisava dar sua “cota de sacrifício”, declaração que foi rebatida pela entidade.

A possibilidade de alteração mais drástica da proposta causou apreensão. Enquanto o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), falava ao telefone para medir o termômetro da votação, o líder do governo, Ricardo Barros, costurava um acordo com a bancada da bala. Lira segurou a votação por mais de uma hora para garantir o acordo.

Só depois da sinalização de que categorias seriam contempladas em votação de segundo turno, parlamentares orientaram a mudança de voto para derrotar o pleito do PT. Por aplicativo de mensagem, o deputado Capitão Augusto (PP-SP) disparou mensagens em que dizia que a “Frente Parlamentar de Segurança pede que mudem de voto”. Antes do acordo, a oposição insistia para que Lira encerrasse a votação e abrisse o painel. Lira, então, chegou a dizer ironicamente que o painel estava “quebrado”.

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Medida deve ter efeito cascata em salários e aposentadorias

11/03/2021

 

 

O principal impacto fiscal da liberação de promoções e progressões para o funcionalismo mesmo em períodos de crise fiscal será de longo prazo, na avaliação de economistas. A medida terá efeito no salário final dos servidores e em suas aposentadorias.

— Com progressão e promoção, você afeta o salário daquele mês, mas vai afetar até a aposentadoria da pessoa. É um efeito cascata a longo prazo enorme —diz o economista André Luiz Marques, do Insper, que reforça a necessidade de se projetar o impacto de qualquer reajuste em um horizonte de 20 a 30 anos.

O especialista avalia que, ao aceitar o acordo e abrir mão desse gatilho, o governo passa duas mensagens. A primeira é um recado para a sociedade, em que fica explícito o poder de pressão do funcionalismo para barrar propostas de ajuste fiscal que o afetam, o que pode até causar um desgaste na imagem desses servidores. A segunda é sobre o impacto fiscal de fato, que é difícil de calcular, mas gera efeito futuro.

Para Bruno Lavieri, sócio da consultoria 4intelligence, ainda que as reclamações dos servidores sejam legítimas, o plano de governo precisa vir antes:

— Na prática, o governo não tem consenso nem dentro dele próprio para avançar com essa proposta. Ele não depende da oposição para aprovar essa PEC, ele teria maioria se tivesse consenso, mas não consegue formar.