O Globo, n. 31986, 04/03/2021. Editorial, p.2

 

 

Mansão em Brasília levanta novas suspeitas sobre Flávio Bolsonaro

 

 

É de fato intrigante o talento do senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um, para fechar negócios suspeitos, em particular no setor imobiliário. Depois de ter conseguido uma vitória no STJ na invalidação de provas de lavagem de dinheiro no processo das “rachadinhas”, quando era deputado na Alerj, o filho do presidente aparece agora comprando uma mansão no Lago Sul, área nobre de Brasília, por R$ 6 milhões. De acordo com ele, o financiamento bancário foi complementado com dinheiro da venda de um apartamento no Rio, comprado também de maneira nada ortodoxa, segundo o Ministério Público fluminense.

Não se sabe se por descuido ou sensação de impunidade, Flávio voltou a chamar a atenção pela prodigalidade de seus negócios mal-explicados. Em vídeo, disse que levantou recursos em três fontes: a venda de um imóvel que tinha no Rio na Barra de Tijuca, a alienação da famosa loja de chocolate —usada, segundo o Ministério Público fluminense, para lavar dinheiro — e, somado a tudo isso, um empréstimo do Banco de Brasília (BRB) de R$3,1 milhões, pouco mais da metade dos R$ 6 milhões pagos pela mansão. O BRB é um banco do Distrito Federal, cujo governador, Ibaneis Rocha, é aliado do presidente Jair Bolsonaro.

Simulações feitas pelo GLOBO usando os parâmetros do BRB mostram que a primeira prestação do empréstimo seria de aproximadamente R$ 18 mil, mais da metade do salário bruto de Flávio (R$ 33 mil). Para obter o crédito, ele declarou ter renda mensal de R$ 28 mil, somada à da mulher, Flávia, de R$ 8 mil. Só que, nessa operação, que oferece juros de 3,65% a 4,85%, o banco exige renda mínima de R$45mil,maisqueasomadoqueocasal recebe. Para completar, a escritura foi lavrada num cartório em Brazlândia, a 45 quilômetros de Brasília. Não será nenhuma surpresa se o negócio despertar novas investigações, nem se elasforemdepoisarquivadasmediante alguma manobra no Judiciário.

No final de fevereiro, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por quatro votos a um, aceitar habeas corpus impetrado pela defesa de Flávio contra quebras do sigilo fiscal permitidas pela Justiça fluminense. Novos pedidos serão julgados pela mesma turma, de que faz parte o ministro João Otávio de Noronha, próximo ao presidente Bolsonaro. Pode ser invalidado um grande acervo de provas e evidências acumuladas nas investigaçõessobreaparticipaçãodoainda deputado estadual Flávio no esquema de devolução de parte dos salários de assessores nomeados para seu gabinete na Alerj, operação de desvio de dinheiro público aparentemente gerida pelo ex-PM Fabrício Queiroz. Talvez por isso, Zero Um esteja confiante.

Mesmo que a Justiça lhe seja benévola, os efeitos políticos negativos para o presidente Bolsonaro não poderão ser revogados. As promessas de que combateriaacorrupçãojáforamsepultadas faz tempo. A mansão de Zero Um, a vigésima operação imobiliária dele em 16anos,vemapenaslembrarqueopresidente não economizará esforços se precisar defender a própria família.