O Globo, n. 31986, 04/03/2021. País, p.4

 

Mordaça na educação

 

 

MEC quer proibir ato político em universidades; CGU processa docentes

 

ADRIANA MENDES, DANIEL GULLINO E RENATA MARIZ

opais@oglobo.com.br

 

Dois órgãos do governo federal tomaram atitudes para tentar coibir manifestações políticas dentro das universidades. O Ministério da Educação encaminhou um ofício à Rede de Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) em que pede providências para “prevenir e punir atos político-partidários”. Já a Controladoria-Geral da União (CGU) instaurou processo contra dois professores da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) por críticas ao presidente Jair Bolsonaro. Eles acabaram assinando um termo em que aceitam uma “mordaça” de dois anos em troca do fim do procedimento.

O documento enviado pelo MEC reproduz trechos de uma recomendação de 2019 do procurador-chefe da República em Goiás, Ailton Benedito de Souza. O procurador é conservador, se descreve como “anticomunista” e é atuante em redes sociais em defesa de Bolsonaro.

O ofício enviado às universidades diz que bens públicos “não podem ser empregados para promoção de eventos de natureza político-partidária”. De acordo com o texto, a manifestação política contrária ou favorável ao governo representa malferir “o princípio da impessoalidade”. Um outro trecho diz que “a promoção de eventos, protestos, manifestações etc. de natureza político partidária, contrários ou favoráveis ao governo, caracteriza imoralidade administrativa”.

Assinado pelo diretor de Desenvolvimento da Rede de Ifes, Eduardo Gomes Salgado, o documento foi encaminhado em 7 de fevereiro. Ele esclarece que a recomendação visa atender à solicitação da Corregedoria do MEC, em “face ao recebimento de denúncias”.

Procurado, o MEC não informou quais seriam as denúncias. Em nota, diz que o ofício visa orientar as instituições “em relação aos casos de realização de atos em suas dependências, a fim de evitar que tais espaços e bens sejam utilizados de formas desconexas com a finalidade da instituição de ensino”.

Em outra frente, a CGU, a partir de uma a representação do deputado Bibo Nunes (PSL-RS), instaurou um procedimento administrativo contra dois professores que criticaram Bolsonaro. Para encerrar o processo, os dois docentes da Universidade Federal de Pelotas, Pedro Hallal e Eraldo dos Santos Pinheiro, optaram por assinar um termo de ajustamento de conduta (TAC) no qual se comprometem a não repetir o comportamento pelos próximos dois anos.

Os extratos dos TACs foram publicados ontem no Diário Oficial da União e registram que os professores proferiram, em janeiro, “manifestação desrespeitosa e de desapreço direcionada ao Presidente da República”. O ato é baseado em um artigo da lei 8.112 que proíbe funcionário públicos de “promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição”.

Como as falas foram feitas em canais oficiais da Ufpel no Youtube e no Facebook, a CGU considerou que isso poderia ser considerado como “local de trabalho”.

As falas que motivaram o processo na CGU foram realizadas durante transmissão, em 7 de janeiro, para comentar a nomeação da nova reitora da Ufpel, Isabela Fernandes Andrade, que foi a segunda mais votada na lista tríplice para o cargo — ela resolveu depois dividir o cargo com Paulo Ferreira Júnior, o mais votado. Na ocasião, Hallal afirmou que Bolsonaro tentou dar um “golpe” na universidade:

— Quem tentou dar um golpe na comunidade foi o presidente da República, e eu digo presidente com “p” minúsculo. Nada disso estaria acontecendo se a população não tivesse votado em defensor de torturador, em alguém que diz que mulher não merecia ser estuprada ou no único chefe de Estado do mundo que defende a não vacinação da população.

Já Pinheiro chamou Bolsonaro de “genocida”:

— Grupo liderado por um sujeito machista, racista, homofóbico, genocida, que exalta torturadores e milicianos. Que ao longo do tempo vem minando, destruindo as estruturas já precárias de nossas instituições.

Hallal disse que uma análise descartou infrações graves e determinou que o único enquadramento possível seria no artigo sobre o “desapreço”, considerado de menor potencial ofensivo:

— Eu conversei com os meus advogados e entendemos que esse era um desfecho adequado para nós, porque era um arquivamento sumário do processo. As acusações graves a própria CGU descartou.

Procurada, a CGU informou que o “TAC é um instrumento de natureza consensual, não possuindo, pela sua própria natureza, qualquer caráter punitivo”. Bibo Nunes considera o TAC “muito aquém” do necessário e quer o afastamento dos professores dos cargos.

 

MACARTISMO E CENSURA

As decisões do Executivo foram criticadas como uso abusivo e distorcido da legislação e contrárias à liberdade de expressão e de cátedra.

— Isso não tem nada a ver com exigir responsabilização, mas sim tolher a liberdade de expressão e a liberdade acadêmica — afirma Floriano de Azevedo Marques, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO, as ações foram pautadas na lógica macartista, movimento norte americano que ficou conhecido por violar o direito à opinião política, e na censura, e devem ser contestadas no Supremo Tribunal Federal.

— Macartismo porque na realidade está se fazendo um uso abusivo dos instrumentos legais para atacar adversários políticos ou pessoa com posição divergente. E censura porque o ambiente acadêmico é de livre debate,o que comporta críticas a um governante ou a políticas públicas — afirma Cláudio Couto, cientista político e professor da Fundação Getulio Vargas de São Paulo.

 

 

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Política nas universidades já foi liberada pelo STF

 

CAROLINA BRÍGIDO

carolina@bsb.oglobo.com.br BRASÍLIA oglobo.globo.com/analitico

 

O ofício do Ministério da Educação que recomenda “prevenir e punir atos político-partidários nas instituições públicas federais de ensino” afronta uma decisão tomada pelo

Supremo Tribunal Federal (STF) em maio do ano passado. O plenário da mais alta Corte do país foi unânime ao declarar que são inconstitucionais atos que vão contra a liberdade de expressão de alunos e professores e tentativas de impedir a propagação de ideologias ou pensamento dentro das universidades.

O ofício do MEC foi enviado em fevereiro à Rede de Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes). O texto diz que manifestação política contrária ou favorável ao governo “caracteriza imoralidade administrativa”, porque bens públicos não poderiam ser empregados “para promoção de eventos de natureza político-partidária”. A orientação é baseada em uma recomendação de 2019 do procurador-chefe da República em Goiás, Ailton Benedito de Souza, aliado do presidente Jair Bolsonaro.

No ano passado, em um julgamento realizado no plenário virtual, os ministros do STF concordaram em uníssono com a relatora, Cármen Lúcia. “Imporse a unanimidade universitária, impedindo ou dificultando a manifestação plural de pensamentos é trancar a universidade, silenciar o estudante e amordaçar o professor”, anotou a ministra.

A polêmica surgiu durante as campanhas de 2018, quando universidades públicas de ao menos nove estados brasileiros foram alvos de operações policiais autorizadas por juízes eleitorais. As ações aconteceram para averiguar denúncias de campanhas político-partidárias que estariam acontecendo dentro das universidades. Às vésperas das eleições, Cármen Lúcia concedeu liminar para suspender as decisões. Depois a liminar foi confirmada pelo plenário do Supremo.

O ofício do MEC, se for obedecido por universidades do país, poderá ensejar novas ações judicias no STF. Com um placar tão definitivo cravado no ano passado, o mais provável é que o tribunal volte a condenar o que considerou censura a alunos e professores, ainda que o momento não seja de campanha eleitoral.