O Globo, n.32003 , 21/03/2021. País, p.12

 

Entrevista – Fabiana Santiago: "Usar a lei assim, é calar a crítica, não proteger o estado"

Filipe Vidon

21/03/2021

 

 

Fabiana Santiago / ESPECIALISTA NA LEI DE SEGURANÇA NACIONAL

 Praticamente ignorada por muitos anos, a Lei de Segurança Nacional (LSN) foi resgatada no governo Jair Bolsonaro e tem sido usada para investigar supostos crimes praticados por críticos do presidente — ao todo, foram 51 inquéritos abertos pela Polícia Federal com base na legislação em 2020, quase o triplo do número de 2018, na gestão de Michel Temer. Na semana passada, manifestantes que ergueram uma faixa chamando o presidente de “genocida” foram detidos pela Polícia Militar — e depois liberados —, em um sinal de que o uso abrangente da lei tem se espalhado pelas forças policiais.

Para Fabiana Santiago, autora do livro “Lei de Segurança Nacional, da era Getulio Vargas à gestão de Michel Temer” e professora de Direito do Centro Universitário Estácio de Brasília, a aplicação da LSN para enquadrar protestos contra o presidente representa uma “tentativa de impedir o jogo democrático”.

O que está por trás do aumento no número de inquéritos com base na Lei de Segurança Nacional?

É um retrocesso. A lei foi criada em um momento de estado de exceção, de preocupação de quem estava no poder em se manter lá, que foi o período da ditadura militar. A LSN ficou no ostracismo por muito tempo, mas agora é retirada da gaveta como uma forma de afastar o debate de oposição ao governo. Quem recebe uma intimação fundamentada na LSN fica imediatamente acuado, temeroso de se manifestar. É uma tentativa de impedir o jogo democrático.

A lei deve ser revista?

Eu entendo que ela poderia ser mantida com recorte de artigos que remontam ao período de exceção, textos extremamente ambíguos que defendem os chefes de Poder. Isso é perigoso. Ela equipara a pessoa física que ocupa o cargo de poder à figura do Estado, o que é problemático. Mas ela não é inteiramente incompatível. É necessária para defender o estado democrático de direito, a tripartição de poderes e outras instituições necessárias ao jogo democrático.

Qual o peso da crise sanitária gerada pela pandemia no comportamento do governo?

A pandemia tem um peso enorme. É um momento crítico, e o governo está acuado. Quando se vê criticado, toma medidas para frear o discurso contrário. Em governos anteriores, tivemos um cenário propício à oposição, sempre ouvimos críticas aos presidentes. Mas, quando um governo não aceita e lança a LSN para tratar da questão, ele quer prejudicar o jogo democrático. Essa é uma característica do governo atual.

É um caminho rumo ao autoritarismo?

É complicado fazer essa avaliação. Eu entendo como tentativa de acuar, mas eles estão utilizando dispositivos legais que estão em vigência. A tendência de radicalismo já ficou exposta em outras situações, como a tentativa de calar professores de universidades federais, intervenção na nomeação de reitores… Mas, a partir do momento em que o ministro Alexandre de Moraes, do STF, utiliza artigos ambíguos da LSN para enquadrar o deputado federal Daniel Silveira, dá abertura para outros atores políticos utilizarem a lei, e esse é um efeito preocupante.

A prisão do deputado, com base na LSN, foi adequada?

Não é inteiramente inadequada. Considero correta a fundamentação jurídica para proteger o estado democrático de direito. Quando um representante de outro Poder vai para a internet exaltar o AI-5, convocar a população contra ministros do STF, há uma violação do Estado brasileiro enquanto ente. E esse é o objetivo de parte da LSN: defesa do estado de direito, integridade territorial. Mas está sendo confundida com defesa da honra de chefes dos Poderes, e considero isso indevido.

Manifestações como a do youtuber Felipe Neto, que chamou o presidente de “genocida”, foram enquadradas na LSN. Esses casos transpõem o limite da liberdade de expressão ou se enquadram no uso equivocado da lei?

Independentemente do mérito da adjetivação, precisamos lembrar dos valores democráticos. A honra de chefes de governo não pode ser confundida com a defesa do Estado brasileiro. Esse uso inverte completamente a lógica da lei perante a Constituição. As autoridades devem ser respeitadas, como qualquer um, mas existem ferramentas jurídicas que tratam exatamente disso. O Código civil existe, declarações difamatórias ou que afetem a honra de alguém estão cobertas. Usar a LSN dessa maneira é calar a crítica, e não proteger o Estado sobre eventuais riscos à democracia. O recado é claro: não critique seu presidente, não fale nada sobre ele, pois será interpretado como uma crítica ao Estado, e assim o debate democrático não é possível.