O Globo, n.32005 , 23/03/2021. País, p.4
Ecos da ditadura
Carolina Brígido
23/03/2021
Supremo deve derrubar trechos da LSN que limitam liberdade de expressão
O Supremo Tribunal Federal (STF) deve derrubar trechos da Lei de Segurança Nacional (LSN) por considerá-los incompatíveis com a Constituição de 1988. Editada em 1983, durante o regime militar, a norma tem sido usada pelo governo federal e por autoridades locais para coibir manifestações contra o presidente Jair Bolsonaro. Em caráter reservado, ministros do Supremo consideram que o governo tem feito uso muito amplo da norma, de forma a restringir a liberdade de expressão garantida pela Constituição Federal. A data do julgamento ainda será definida.
Em live no sábado, o ministro Ricardo Lewandowski disse que a lei é um “fóssil normativo” e que o Supremo vai avaliar sua constitucionalidade:
— A Lei de Segurança Nacional foi editada antes da nova Constituição, da Constituição cidadã, da Constituição que traz na sua parte vestibular um alentadíssimo capítulo relativo sobre direitos e garantias fundamentais. O Supremo precisa dizer se esse fóssil normativo é ainda compatível não apenas com a letra da Constituição, mas com o próprio espírito da Constituição. É um espectro que ainda está vagando no mundo jurídico e precisamos, quem sabe, exorcizá-lo ou colocá-lo na sua devida dimensão.
Durante um julgamento em 2016, o ministro Luís Roberto Barroso deu declaração no mesmo sentido:
—Já passou a hora de nós superarmos a Lei de Segurança Nacional, que é de 1983, do tempo da Guerra Fria, que tem um conjunto de preceitos inclusive incompatíveis com a ordem democrática brasileira. Há, no Congresso, apresentada, de longa data, uma nova lei, a Lei de Defesa do Estado Democrático e das Instituições, que a substitui de maneira apropriada.
Outros ministros consultados em caráter reservado pelo GLOBO consideram exagerado o uso da lei pelo governo em eventos recentes. Na semana passada, o Ministério da Justiça processou o autor de um outdoor em Tocantins que comparava Bolsonaro a um “pequi roído”, ou seja, coisa sem valor na gíria local.
Já o youtuber Felipe Neto foi acionado pela Polícia Civil do Rio por ter chamado Bolsonaro de genocida. Na semana passada, a Polícia Militar do Distrito Federal chegou a prender e levar para a PF, com base na Lei de Segurança Nacional, um grupo de manifestantes que estendeu cartazes em frente ao Palácio do Planalto com o mesmo termo.
Há, porém, uma pedra no caminho do Supremo. Os dois inquéritos mais polêmicos que tramitam na Corte, o das fake news e o dos atos antidemocráticos, foram abertos com base na LSN. Há ainda uma decisão recente, e não menos polêmica, baseada na mesma norma: a ordem de prisão expedida pelo ministro Alexandre de Moraes contra o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ).
Ministros do STF afirmam que o fato de o tribunal fazer uso da Lei de Segurança Nacional não é impeditivo para derrubar trechos dela. Há uma espécie de consenso no sentido de que a norma é importante para garantir a democracia e a integridade das instituições. A ideia seria banir apenas trechos que ameaçam a liberdade de expressão e de informação. Portanto, outros trechos continuariam intactos.
AÇÃO DE PARTIDOS
Ontem, o PSDB recorreu ao Supremo para suspender a LSN. Em nota, a legenda afirmou que o Brasil “jamais poderá se dizer genuinamente democrático” enquanto a lei estiver em vigor. Já havia no STF ações de PTB e PSB contestando a lei. O relator das ações é o ministro Gilmar Mendes. No Congresso também há projetos para mudar a LSN.
Em uma terceira vertente, a Defensoria Pública da União entrou com um habeas corpus coletivo no Supremo pedindo o fim de todos os processos iniciados com base na norma. Ainda não foi sorteado um relator para o caso.
Um dos artigos mais controvertidos da lei é o 26, que fixa pena de um a quatro anos de reclusão contra quem caluniar ou difamar os presidentes dos Três Poderes. A mesma pena cabe para quem, conhecendo o caráter ilícito da prática, a divulga.
A polêmica está no fato de que é uma pena maior do que a estabelecida no Código Penal para os mesmos crimes, mas praticados contra qualquer pessoa, sem especificar se é autoridade ou não. No Código Penal, o crime de calúnia gera pena de seis meses a dois anos de detenção. A difamação é punida com três meses a um ano de detenção.
Já os artigos 18 e 23 da LSN são definidos por juristas como pouco precisos. O primeiro considera crime “tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados”; o outro coíbe a incitação “à subversão da ordem política ou social”. Para analistas, eles dão margem para autoridades os usem de forma equivocada.
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Entrevista – Carlos Velloso: "Há excesso na invocação da Lei de Segurança Nacional"
23/03/2021
Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Velloso afirmou ao GLOBO que enxerga um “excesso na invocação” da Lei de Segurança Nacional (LSN) diante do avanço de inquéritos abertos pela Polícia Federal (PF) no ano passado, o segundo da presidência de Jair Bolsonaro.
Em 2020, segundo a PF, 51 investigações foram iniciadas com base na LSN. O número é mais do que a soma dos dois anos anteriores (45). Em 2017, cinco inquéritos penais foram abertos.
Na avaliação de Velloso, o Congresso deveria rever o texto da LSN, que foi sancionada em 1983 pela ditadura e incorporada à Constituição de 1988. Segundo o jurista, a lei tem previsões “incompatíveis” com o texto constitucional.
Embora seja oriunda da ditadura militar, a Lei de Segurança Nacional foi de alguma forma adequada ao regime democrático?
A LSN já devia ter sido revisada pelo Congresso Nacional. Há, nessa lei, dispositivos incompatíveis com a Constituição de 1988.
O aumento de inquéritos em 2020 e os exemplos mais recentes, como intimações e detenções de pessoas que classificaram o presidente como “genocida”, sugerem um uso exagerado da LSN?
Sim. Penso que está havendo extrapolação ou excesso na invocação da Lei de Segurança Nacional. Esta lei tipifica crimes políticos e o conceito de crime político não é de fácil definição. O crime político é o que visa a produzir dano à existência do Estado, considerado este como ente político. Há de ser observado, também, o móvel do delito, isto é, a finalidade deste, que deve ser a mudança do regime político.
Que tipo de críticas dirigidas a chefes de Poderes poderiam dar margem ao uso da LSN?
Na minha opinião, não poderia ser invocada a Lei de Segurança Nacional. A liberdade de expressão do pensamento é garantida pela Constituição, é um direito fundamental. É claro, se houver excesso, se ocorrer calúnia, difamação ou injúria, o ofendido pode pedir a reparação, seja no campo penal, seja no campo civil. Além da ação penal, indenização por dano material e, sobretudo, por dano moral, pode ser pleiteada judicialmente contra o ofensor.
Aliados de Bolsonaro também questionaram o uso da lei, após a prisão do deputado Daniel Silveira. Há diferenças entre essas situações em que a LSN foi invocada?
Nesses casos mencionados, a LSN, na minha opinião, foi invocada equivocadamente. Como afirmei, ela pretende tipificar delitos políticos. E o faz de forma vaga e aberta, o que não é correto. A tipificação do delito há de ser cerrada, isto é, conter claramente todos os elementos caracterizadores da figura penal.