Valor Econômico, n. 5197, v.21, 01/03/2021. Brasil, p.A14

 

 

 

“País vive pior momento e caos de Manaus pode se repetir”

 

Ex-diretor de imunização do Ministério da Saúde diz que medidas individuais não têm sido suficientes para conter propagação do vírus e defende “lockdown” de pelo menos duas semanas

Por Lucianne Carneiro — Do Rio

 

Ex-diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, o pesquisador Julio Croda, da Fundação Oswaldo Cruz, acredita que o país vive o pior momento da pandemia, diante dos recordes de óbitos e casos, e não vê perspectiva de melhora a curto prazo. Na sua avaliação, as medidas individuais de proteção - como máscaras - não têm sido mais suficientes para evitar a propagação da covid-19, e são necessárias medidas restritivas mais amplas, como um “lockdown” de pelo menos duas semanas. Caso contrário, diz ele, o caos observado no início do ano em Manaus pode se repetir em outras cidades.

 

“Estamos vendo uma terceira onda se iniciando ainda sem ter uma redução importante de casos de óbitos relacionados à segunda onda”, alerta.

 

 

 

Croda divulgará esta semana os primeiros resultados parciais para identificar a efetividade das vacinas Coronavac e Oxford Astrazeneca contra a P1, a nova variante do Sars-Cov-2. A seguir, os principais trechos da entrevista:

 

Valor: Quão preocupante é a situação da pandemia hoje?

 

Julio Croda: Estamos vivenciando o pior momento da pandemia. Atingimos o recorde diário de óbitos e temos um aumento expressivo da média do número de casos, para um patamar elevado, acima de 60 mil. Não vemos nenhuma redução perspectiva de casos neste momento, o cenário não vai se resolver nas próximas semanas. Isso faz com que a gente entenda que essa tendência vai continuar, pelo menos em relação ao número de óbitos. Para observar alguma queda, é preciso primeiro uma redução expressiva de casos, depois de óbitos. Os Estados estão decretando medidas restritivas, muitos estão com ocupação de UTI acima de 90%. O Acre está solicitando transferência de pacientes.... Estamos vendo uma terceira onda se iniciando ainda sem ter uma redução importante de casos de óbitos relacionados à segunda onda. É o pior momento da pandemia. Na primeira onda, primeiro teve uma redução de óbitos, o que não ocorreu agora. Saímos de uma situação com média de mil óbitos diários, para a atual, em torno de 1.500, e isso ainda pode aumentar.

 

Valor: Como vê o andamento da vacinação?

 

Croda: Não temos vacina suficiente, e a vacinação está num ritmo muito lento. E isso ocorre no contexto de uma nova variante, que já foi detectada na maioria dos Estados e que está se tornando predominante no Brasil. Ela já deve ser responsável pela maioria dos casos, só não testamos de forma adequada.

 

Valor: Qual é o papel da nova variante brasileira no agravamento da pandemia no país?

 

Croda: Ela tem um papel importante, mas não é só ela. A gente tem dificuldade de impor medidas individuais preventivas, como máscaras, lavagem de mão e evitar aglomeração. A gente não conseguiu fazer isso durante as festas de fim de ano. E esse aumento de agora também deve estar relacionado às festas que ocorreram no carnaval. Com uma variante mais transmissível, a tendência é ver em outros locais aquele caos que observou em Manaus, em que as pessoas morreram sem assistência, em casa, precisando de oxigênio. E isso aumenta a taxa de letalidade da doença. Esse aumento muito rápido foi observado em Araraquara, por exemplo, e pode se repetir em diversas cidades do Brasil. Teremos que adotar medidas mais restritivas, seja por bem ou por mal. A nova variante é mais transmissível e a capacidade de os Estados abrirem novos leitos vai ser limitada.

 

Valor: Qual é o risco de se repetir o que se viu em Manaus em outras cidades?

 

Croda: Isso vai depender da adesão das medidas preventivas e de como cada Estado, município e o governo federal vão impor medidas restritivas em termos mais globais. No momento, as medidas individuais já não dão conta de frear a transmissão da doença nem serão suficientes para impedir o colapso. O número crescente de casos mostra o descontrole da pandemia e a taxa de mais 90% de ocupação das UTIs em muitos Estados também. Então será preciso tomar medidas coletivas, com impactos econômicos e sociais importantes. Se não, o que a gente vai ver é a tragédia de Manaus se repetir em importantes cidades. Aí cada gestor vai ter que lidar com isso, da maneira que seja razoável.

 

Valor: O senhor defende um “lockdown”? Há espaço para isso?

 

Croda: O Ministério da Saúde deveria dar orientação técnica e adequada sobre quais os indicadores que devem ser avaliados pelas cidades para implementar medidas coletivas mais restritivas, como um “lockdown”. Só que não faz nenhuma nota técnica neste sentido. Sem orientação, cada Estado e cada cidade faz de um jeito. Pelo que a gente sabe de experiência internacional, especialmente no Reino Unido, que impôs três “lockdowns” de sucesso, é que é preciso reduzir a transmissão para abaixo de um. E isso requer medidas mais extremas, com “lockdown” de pelo menos duas semanas. Vemos prefeitos instituindo toques de recolher e lockdown de três ou quatro dias, mas talvez isso não tenha impacto nenhum. É um cenário bastante complicado. Não vejo espaço para uma orientação do Ministério da Saúde nesse sentido, não é o entendimento do presidente. Sem apoio da esfera federal, governadores e prefeitos vão adotar as medidas que podem, que são possíveis e que conseguem lidar em relação à sociedade. No Amazonas, o governo decretou fechamento do comércio, mas enfrentou protestos e voltou atrás, liberando as atividades. Duas semanas depois se viu uma explosão de casos.

 

Valor: Já há informações sobre a ação das vacinas na nova variante brasileira?

 

Croda: Com apoio da Fundação de Vigilância de Saúde do Estado do Amazonas, da Secretaria Municipal de Saúde de Manaus e da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), estou coordenando um projeto na Fiocruz para avaliar se a vacina ainda é efetiva para a nova variante justamente onde ela já predomina, que é Manaus. O estudo avalia a efetividade da vacina, no mundo real, se vai proteger ou não contra a P1, que é a nova variante brasileira. Acompanhamos trabalhadores da saúde, que tomaram a Coronavac, e idosos, que tomaram Coronavac e Oxford/ AstraZeneca. Será um dos primeiros locais para entender o impacto da nova variante em relação a uma campanha de vacinação em massa, para grupos prioritários. Este trabalho é fundamental para avaliar se a vacinação continua útil ou se é preciso fazer atualizações da vacina. Vamos fazer a primeira divulgação parcial esta semana, avaliando se a vacina é capaz de prevenir os sintomas e as infecções. Depois, vamos avançar para avaliar se previne internações e óbitos, por exemplo.

 

Valor: E a vacinação? Vê chance de aceleração do ritmo?

 

Croda: Há a promessa de chegada de um lote grande da vacina da Oxford/AstraZeneca em março. Além disso, o governo comprou 20 milhões de doses de Covaxin. Pode ser que até lá haja avanço na fase 3 de testes e na aprovação da Anvisa. Temos uma perspectiva de mais vacinas a partir de março, mas não está claro para mim em quanto vai aumentar o ritmo de vacinação. Tem muitas incertezas, muitos atrasos na entrega de doses, é uma questão em aberto. Mas sabemos da necessidade de o ritmo aumentar muito para conseguirmos vacinar todos os idosos e as pessoas com comorbidade, o que equivale a cerca de 25%, 30% da população brasileira. Nem chegamos a 5% ainda. Se tudo der certo, pode ser que acelere (o ritmo), mas tem vários “se” e é difícil prever.