O Globo, n.32008 , 26/03/2021. País, p.4

 

Queda de braço

Paulo Cappelli

Jussara Soares

Julia Lindner

Daniel Gullino

Eliane Oliveira

26/03/2021

 

 

Congresso pede demissão de Ernesto Araújo; Bolsonaro resiste

O governo fez ontem uma operação para tentar reduzir a insatisfação no Congresso com a condução da pandemia após o duro discurso feito no dia anterior pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e uma sabatina no Senado com reiterados pedidos de demissão do ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Lira recebeu o chanceler em sua residência e teve também um encontro com o presidente Jair Bolsonaro, que declarou não haver “problema nenhum” entre eles. Mas a pressão no Congresso pela demissão de Araújo segue, enquanto o presidente resiste a dispensá-lo.

Apesar de ter sido avisado com antecedência do discurso crítico de Lira, Bolsonaro não gostou do tom adotado pelo parlamentar. O presidente compreendeu a necessidade de ele marcar posição pelas pressões que vinha recebendo da classe política, que discordou da escolha de Marcelo Queiroga para o Ministério da Saúde. Entretanto, se surpreendeu ao ouvir, no discurso, uma ameaça velada de impeachment, traduzida no trecho em que Lira diz que há “remédios políticos no Parlamento” que são “fatais”.

Na conversa com o presidente, Lira foi claro ao defender a demissão de Araújo, citando problemas diplomáticos como um dos fatores no atraso do calendário de vacinação. O parlamentar disse que, diferentemente do que ocorreu em relação à Saúde, não havia nenhum nome a ser indicado, bastando a troca do chanceler. Estavam presentes o presidente do PP, Ciro Nogueira, e os ministros das Comunicações, Fábio Faria, e da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. Bolsonaro buscou negar qualquer atrito.

— Eu conversei com o Lira, não tem problema nenhum entre nós. Zero problema. Conversamos sobre muitas coisas. O que queremos juntos é uma maneira de contratarmos mais vacinas. É, na ponta da linha, fazer com que chegue as informações de que as vacinas estão sendo aplicadas — disse o presidente, que fez questão de acompanhar Lira (e o presidente do PP, Ciro Nogueira) até a saída do Palácio do Planalto, um gesto incomum.

Antes, Lira recebeu Araújo. O chanceler explicou o papel do Itamaraty na aquisição das vacinas, alegando que há uma confusão sobre qual é a responsabilidade da pasta, negando que haja culpa por qualquer atraso.

Bolsonaro segue resistindo a fazer uma troca. Segundo pessoas próximas, ele avalia que já fez muitas concessões, e dispensar Ernesto Araújo, um dos expoentes da ala ideológica — logo depois de demitir Eduardo Pazuello da Saúde e tirar Fabio Wajngarten da Secretaria de Comunicação —poderia desagradar à própria militância, base importante para a campanha da reeleição em 2022.

PRESSÃO NO SENADO

A pressão sobre Araújo está forte no Senado. Em sabatina anteontem, ouviu seguidos pedidos para que deixasse o cargo e foi reprovado pelo tom hostil direcionado a países como a China, principal fornecedor de insumos e vacinas. O presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), endossou ontem as críticas à diplomacia:

— Muito além da personificação ou do exame sobre o trabalho específico de um chanceler, o que se tem que mudar é a política externa do Brasil. Evidentemente, que ela precisa ser aprimorada, melhorada, as relações internacionais precisam ser mais presentes... Um ambiente de maior diplomacia. Isso é algo que está evidenciado a todos, não só no Congresso Nacional, mas a todos os brasileiros que enxergam a necessidade de o Brasil ter uma representatividade externa melhor do que tem hoje.

Enquanto Bolsonaro resiste, auxiliares do presidente admitem que a demissão seria a melhor saída para evitar um crescimento da crise política neste momento. Por outro lado, aliados de Araújo reclamam do ministro Ramos, responsável pela articulação com o Congresso. A avaliação é que ele “dormiu no ponto” e deixou o chanceler abandonado na audiência no Senado, sem uma orientação de defesa para a base governista. Horas antes, o ministro tinha passado por mais tranquilidade por reunião na Câmara, onde teve o apoio de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente.

Ramos é general e, como os demais militares, não mantém boas relações com a ala ideológica do governo, da qual faz parte o ministro das Relações Exteriores. Recentemente, o vice-presidente Hamilton Mourão chegou a dizer que haveria troca de comando no Itamaraty em uma reforma ministerial e acabou desautorizado por Bolsonaro.

ASSESSOR NA BERLINDA

Outro integrante da ala ideológica ou olavista — em uma referência ao guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho —é o assessor para assuntos internacionais da Presidência da República, Filipe Martins.

Ele está sendo investigado pela polícia legislativa do Senado, a pedido de Pacheco. Durante a sabatina de Araújo, o assessor fez um gesto associado a supremacistas brancos. Martins negou e disse que estava apenas ajustando a lapela do terno.

O Museu do Holocausto de Curitiba se manifestou nas redes sociais com uma nota de repúdio ao gesto feito pelo assessor internacional da Presidência .

Bolsonaro comunicou ontem a aliados que vai exonerar Martins. O presidente afirmou que não vai se desgastar com “gente grande” por conta de erro “de terceiro escalão”. A exoneração, porém, não foi feita ontem, e dentro do Planalto há quem afirme que a saída não está definida e que o assessor pode ser somente deslocado de função.

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Da ‘ala ideológica’ do governo, Filipe Martins coleciona crises

26/03/2021

 

 

A crise com o Congresso iniciada anteontem por Filipe Martins não é a primeira protagonizada pelo assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais. Martins, que integra a chamada “ala ideológica” do governo, tornou-se alvo da indignação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), após aparecer, durante uma sessão da Casa, fazendo um gesto interpretado nas redes sociais como um sinal utilizado por supremacistas brancos.

Em pouco mais de dois anos de trabalho no Palácio do Planalto, Martins conquistou o apreço do presidente e dos filhos, sobretudo o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), enquanto se tornou um dos maiores interlocutores do escritor Olavo de Carvalho, de quem foi aluno. Ao mesmo tempo, colecionou desafetos em Brasília.

O comportamento ácido e as críticas agressivas na internet, que replicam a personalidade de Carvalho, criaram indisposições entre Martins e figuras proeminentes da ala militar do governo, como o vice-presidente Hamilton Mourão, de quem já levou uma bronca por publicações on-line, segundo a revista “Época”, e o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Heleno.

“GABINETE DO ÓDIO”

Além dos militares, Martins esteve em celeumas públicas com os deputados Alexandre Frota (PSDB-SP) e Joice Hasselman (PSL-SP). O tucano chegou a citar o assessor em depoimento ao Supremo Tribunal Federal (STF) como um dos operadores do chamado “gabinete do ódio”, a suposta milícia digital bolsonarista que teria sido instalada no Planalto, de acordo com a oposição.

A pontaria de Martins se volta com frequência a desafetos de Bolsonaro, como o governador João Doria (PSDB-SP), e não poupa a China, parceira comercial do Brasil: em janeiro, Martins chamou a vacina chinesa contra a Covid-19, a CoronaVac, de “xing-ling”.