O Globo, n.32010 , 28/03/2021. [Caderno/Coluna], p.14/15

 

28 mil mortes

28/03/2021

 

 

NO BRASIL, 38% MORREM DE COVID NOS HOSPITAIS SEM CHEGAR A UTI

Afila não anda. Nas 11 primeiras semanas do ano, mais de 28 mil brasileiros morreram de Covid-19 nos hospitais do país sem passar por uma UTI. Os óbitos de pacientes que não chegaram ao tratamento intensivo em 2021 são 38% do total, sendo quase 40% entre 14 a 20 de março. São praticamente quatro em cada dez das 73.105 mortes por Covid deste ano na base do SivepGripe, sistema usado pelo Ministério da Saúde para monitorar as internações nas redes pública e privada.

Nos dados analisados pelo GLOBO foram considerados pacientes já classificados como de Covid-19, a maioria, e os que receberam provisoriamente o diagnóstico de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) não específica, mas que, seguindo metodologia da Fiocruz, traziam sintomas indicativos da doença: febre acompanhada de tosse, dor de garganta, desconforto respiratório, falta de ar, baixa saturação de oxigênio no sangue, perda de olfato ou de paladar. Segundo Domingos Alves, cientista da USP de Ribeirão Preto, o cenário de mortes fora das UTIs atesta que os sistemas de saúde dos estados já entraram em colapso. Esse número era elevado no auge da primeira onda, decresceu ao longo de 2020 e explodiu com o aumento da transmissão registrado a partir de dezembro.

De meados de janeiro a meados de fevereiro deste ano, quando os sistemas de saúde da região Norte entraram em colapso, a proporção de pacientes que morreram sem passar pela UTI passou de 50%. Em Amazonas, Roraima e Acre, ela chegou a 60%. Atualmente, os números são maiores no Sul. Em Santa Catarina, o índice é de 56,1%. No Rio Grande do Sul, ela ultrapassou os 50% no começo de março e agora está em 49,1%. Nos últimos dados disponíveis, o Rio de Janeiro tem 35%, e São Paulo, 41% de mortes entre pacientes com Covid fora da UTI. Um levantamento exclusivo feito pelo GLOBO na sexta-feira mostrava ao menos 5.432 pessoas aguardando vaga em UTIs para Covid em todo o Brasil. Os números impressionam, mas são apenas parte da tragédia, afirma Alves:

—É preciso descobrir quantas pessoas estão na fila de espera e por quanto tempo. Elas morrem em ambulâncias, sem testagem, e nem entram nas estatísticas. As mortes por falta de atendimento vão aumentar as médias móveis, vamos passar facilmente dos 5.000 óbitos diários.

Na linha de frente desde a primeira onda da Covid-19, Guilherme Martins, médico plantonista da UTI do Hospital Universitário Clementino Fraga (UFRJ) e da UPA do EngenhoNovo,explicaqueospacientes que deveriam estar indo para as UPAs estão nas clínicas de família, enquanto os que precisam de hospital ficam nas UPAs. E aí a fila para. Os hospitais lotados não conseguem abrir vagas suficientes para a demanda.

— Salvamos muita gente, mas as pessoas não param de chegar. Doentes são “internados” até em cadeiras — diz. As mortes por Covid-19 também aumentam fora dos hospitais. Levantamento realizado por Alves mostra que, nacidadedeSãoPaulo,emdezembro, cinco pessoas morriam de Covid-19 por dia fora de uma unidade de saúde. No dia 17 de março, já eram 15 os mortos registrados sem qualquer assistência médica.

—Todo o Brasil está em colapso, e o primeiro sinal é a morte fora do hospital, em casa —lamenta Alves. Nestas páginas, depoimentos ilustram o drama: a espera por uma vaga na UTI pode ser para uma família inteira, como os Malet, em Porto Alegre; há a recuperação “milagrosa”, mesmo com a impossibilidade de tratamento intensivo, como a de Wandercleyson Magri, de Nova Granada (SP); e o luto mesclado com a esperança de Camila Maia, que perdeu a mãe na fila para a UTI Covid, mas torce por uma vaga para o padrasto.

“Meu Deus, me tira dessa, sou muito novoº

NOVA GRANADA (SP)
Wandercleyson Magri. TRATORISTA

"Fui diagnosticado com Covid-19 no começo de março. Fiquei em tratamento em casa, tomei os medicamentos, mas piorei demais a partir do sétimo dia. Fui internado em estado grave num centro de emergência respiratória com febre alta, dor de cabeça e muita falta de ar.

Assim que cheguei, já entrei na fila por um leito de UTI na região. Depois de sete dias internado, meu estado de saúde piorou ainda mais. Passava muita coisa na minha cabeça, eu falava: “meu Deus, me tira dessa, sou muito novo para ir embora”. Aos 42 anos, dizia para os médicos: “pelo amor de Deus, arruma uma vaga pra mim, não quero morrer. Eu preciso viver. Tenho um filho de 15 anos, mulher, trabalho, tenho muita coisa para fazer”.

Vi algumas pessoas falecerem. Teve um homem de 55 anos que não resistiu. Dá muito medo ver alguém sendo intubado e pensar que pode ser você o próximo. Meu caso era muito grave, mas na graça de Deus… (chora). Quando completei dez dias internado, comecei a melhorar, sem ser intubado. Aos poucos, foram me tirando do oxigênio. Meu leito de UTI nunca saiu".

“Ela deveria estar intemada já há uma semana''

RIO DE JANEIRO (R1)
Marcos Antônio da Sllva GENRO DEMIRIAM XAVIER

"Ela começou com sintomas há mais de uma semana. Teve dores de cabeça fortes, febre e muita tosse. Primeiro, fomos a uma clínica particular, porque ela tem plano de saúde, mas apenas para ambulatório. Conseguimos fazer o exame de Covid-19 e deu positivo. Os médicos de lá disseram que ela deveria ser internada em UTI, mas que eles não podiam fazer nada.

Tentamos vaga em seis hospitais e não conseguimos. Depois de vários dias, decidimos vir para uma UPA. A oxigenação dela está muito baixa, ela está muito debilitada. Ficou com medicação, oxigênio e na lista de espera. Não nos deram previsão de tempo, só nos resta esperar. Estamos preocupados, ela é diabética e hipertensa. Minha sogra deveria estar internada há uma semana, pelo menos.

Estamos todos com Covid-19 em casa, eu, minha mulher e minha filha, de 19 anos. No meu caso, já estou com os pulmões comprometidos. Talvez também tenha de ser internado. No caso da minha sogra, é urgente porque a saturação dela está baixa. É uma loucura".