O Globo, n.32011, 29/03/2021. País, p.4

 

Tiroteio

Jussara Soares

Melissa Duarte

Janaína Figeureido 

29/03/2021

 

 

Ernesto acusa Kátia Abreu, agrava a crise e Senado reage contra chanceler

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, dobrou a aposta e reagiu à pressão do Congresso que exige do presidente Jair Bolsonaro a troca no comando da política externa brasileira no pior momento da pandemia do coronavírus. Em publicação no Twitter na tarde de ontem, o chanceler relatou uma conversa com a senadora Kátia Abreu (PP-TO), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Casa, insinuando que o movimento por sua demissão está relacionado ao leilão do 5G, e não à importação de vacinas.

Aliados do presidente Jair Bolsonaro costumam acusar parlamentares de trabalhar pela autorização da empresa chinesa Huawei fornecer equipamento para operadores que participem do leilão da tecnologia 5G. A parlamentar reagiu e, em nota, disse que “o Brasil não pode mais continuar tendo, perante o mundo, a face de um marginal.”

Mais pressionado que nunca, o ministro convocou uma reunião com todos os seus secretários no Itamaraty, na manhã de hoje, o que fortaleceu especulações de uma iminente saída.

A troca de ataques agravou o estremecimento entre governo e Congresso. Eleitos com apoio do Planalto, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PPAL), lideram os pedidos para a troca no Itamaraty. Irritado com as cobranças, Bolsonaro vem resistindo. Segundo interlocutores, a ofensiva de Araújo e da militância bolsonarista nas redes teve o conhecimento prévio do presidente. Militantes e aliados do presidente subiram a hashtag #ErnestoAraujofica.

No Twitter, o chanceler afirmou que em uma reunião privada com Kátia Abreu realizada no início do mês “pouco ou nada se falou de vacina” e que a senadora lhe pediu um gesto sobre a questão do 5G, algo que ele não atendeu. O estopim para a insinuação do ministro foi o artigo de Kátia Abreu, publicado na edição de ontem do GLOBO, no qual ela pediu apoio internacional para conseguir lidar com a pandemia e afirmou que o Itamaraty tem hoje uma “arrogância subalterna”.

“Em 4/3 recebi a Senadora Kátia Abreu para almoçar no MRE. Conversa cortês. Pouco ou nada falou de vacinas. No final, à mesa, disse: ‘Ministro, se o senhor fizer um gesto em relação ao 5G, será o rei do Senado’. Não fiz gesto algum. Desconsiderei a sugestão inclusive porque o tema 5G depende do Ministério das Comunicações e do próprio Presidente da República, a quem compete a decisão última na matéria”, publicou Ernesto Araújo.

REVIDE

A reação de Kátia veio por meio de uma nota. “O Brasil não pode mais continuar tendo, perante o mundo, a face de um marginal. Alguém que insiste em viver à margem da boa diplomacia, à margem da verdade dos fatos, à margem do equilíbrio e à margem do respeito às instituições. Alguém que agride gratuitamente e desnecessariamente a Comissão de Relações Exteriores e o Senado Federal”.

A senadora classificou como “uma violência resumir três horas de um encontro institucional a um tuíte que falta com a verdade”. A parlamentar disse que, na conversa, defendeu que as licitações não podem comportar vetos ou restrições políticas e alertou o chanceler dos prejuízos que um veto à China poderia causar às exportações, especialmente ao agronegócio.

A senadora ficou especialmente irritada com o fato do ataque de Araújo ter sido lançado pelo Twitter, onde o ministro contou com o apoio da tropa digital bolsonarista — que se mobilizou nos últimos dias defendendo a sua permanência.

— A minha pergunta é, por que que ele não levantou essa suspeita na audiência pública para qual foi convidado para

se justificar, no Senado Federal? Por que ele esperou para se esconder atrás do Twitter para fazer essa acusação? Como é o nome disso? Só tem dois, o primeiro pode ter sido porcovardia. O segundo é que ele não acredita nisso que ele me acusou, alguém mandou ele tuitar —afirmou a senadora, ao GLOBO.

O ataque à senadora foi recebido como uma ofensiva da ala ideológica do governo contra o Senado, e a Casa discute sobre aprovar moção de repúdio ao chanceler e anunciar formalmente um bloqueio a todas as pautas que vierem da pasta.

“A tentativa do ministro de desqualificar a senadora Kátia Abreu atinge todo o Senado. E justamente em um momento que estamos buscando unir, somar, pacificar as relações entre os Poderes. Essa constante desagregação é um grande desserviço ao País”, publicou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, em suas redes sociais.

CRÍTICA GENERALIZADA

Aliado do Planalto e presidente do Progressistas, o senador Ciro Nogueira (PI) também criticou a fala do chanceler. “No momento em que há um grande esforço para a pacificação e o entendimento, lamento muito que justamente o responsável por nossa diplomacia venha a criar mais um contencioso político para as instituições. O Brasil e o povo brasileiro não merecem isso”, escreveu Nogueira no Twitter.

Como mostrou a coluna de Lauro Jardim no site do GLOBO, a senadora se justificou aos colegas dizendo que a frase de Araújo é uma “inverdade” e citou haver uma ação orquestrada nas redes bolsonaristas para espalhar que os parlamentares foram comprados pela chinesa Huawei. O senador Telmário Mota (PROS-RR), respondeu à senadora dizendo não ser possível conversar com “bandido”.

O agravamento da pandemia fez aumentar a pressão contra Ernesto, pela avaliação de que a vacinação poderia estar mais avançada se não fossem falhas da política externa. Na semana passada, Bolsonaro chegou a questionar Pacheco se a saída de seu assessor para assuntos internacionais, Filipe Martins, seria suficiente e para acalmar os ânimos, mas o Congresso defende a mudança na linha da política externa.

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Centrão mira outros ministros e quer reforma ampla

Paulo Cappelli

29/03/2021

 

 

Líderes do Congresso listam críticas a Ricardo Salles e Milton Ribeiro e vão pressionar para desmembrar pasta de Tarcísio Freitas

Em meio à pressão para a saída do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o Centrão vai intensificar junto ao presidente Jair Bolsonaro o pleito para que haja uma reforma ministerial mais ampla, incluindo outros ministros como alvo. Bolsonaro trocou, na semana passada, o titular da Saúde, Eduardo Pazuello, mas não pôs em seu lugar um indicado pelos aliados no Congresso. Agora, líderes parlamentares fazem críticas a outros integrantes da Esplanada. O titular do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é alvo prioritário depois de Ernesto, mas há também insatisfação com nomes como Milton Ribeiro, à frente da Educação, e Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura.

Salles sofre críticas semelhantes às direcionadas ao ministro das Relações Exteriores. Ambos são acusados pelo Congresso de prejudicar internacionalmente a imagem do país ao colocar a “ideologia acima do pragmatismo”. Os discursos de Salles passarão a ser monitorados com lupa pelo Congresso, e qualquer sinalização hostil a países estratégicos deverá provocar reação de deputados e senadores. O ministro é visto como entrave à aproximação do Brasil com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que cobra maior empenho do país no combate ao desmatamento da Amazônia e chegou a oferecer um fundo bilionário em troca de contrapartidas ambientais.

O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PLAM), avalia que “a política ambiental do Brasil tem funcionado como impeditivo para a captação de investimentos internacionais”:

— A visão é muito negativa não só no Parlamento, mas no mundo inteiro, porque a política do Salles conflita com quem defende o meio ambiente. É uma espécie de “antiministro”.

Parte influente do Congresso também critica Tarcísio de Freitas na Infraestrutura. A alegação é que,  à frente de uma superpasta, Freitas poderia produzir mais resultados do que apresenta. O ministro seria “supervalorizado” e contaria com amplo empenho do Planalto na divulgação de feitos, o que daria a “falsa impressão” de uma atuação exitosa. Como Tarcísio é prestigiado por Bolsonaro, tentar tirá-lo do ministério é visto como inviável, e a intenção é pressionar pelo desmembramento da sua estrutura para entregá-la a um indicado do Centrão.

À frente da Educação, Milton Ribeiro é criticado pela “inércia” e por “não buscar alternativas” para o aprimoramento do ensino na pandemia. O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, também é apontado como pouco ativo.

— Tem ministro que você nem lembra que é ministro. O Ribeiro é um deles. E citaria também o astronauta Marcos Pontes, que, até hoje, parece não ter voltado da Lua — diz Marcelo Ramos, referindo-se ao ministro da Ciência e Tecnologia, cuja saída, embora pleiteada, não está na lista de prioridades do Centrão.