O Globo, n.32011, 29/03/2021. País, p.6

 

Covid-19: Prefeitos insistem em remédio ineficazes

Filipe Vidon

João Paulo Saconi

29/03/2021

 

 

Gestores municipais replicam discurso do presidente Jair Bolsonaro sobre tratamento precoce e distribuem substâncias sem comprovação científica, mesmo após guinada recente do governo federal em prol das vacinas

Um ano após a Covid-19 instalar no país a crise sanitária que já custou as vidas de mais de 310 mil brasileiros, prefeitos de grandes e pequenos municípios ainda se mantêm na contramão da ciência enquanto distribuem medicamentos sem eficácia comprovada às populações como forma de tentar combater a doença. Esses gestores replicam o discurso adotado pelo governo de Jair Bolsonaro ao longo de todo o ano passado e dos últimos meses, antes da guinada recente do presidente em defesa da campanha de vacinação.

Localmente, prefeituras seguem entregando a munícipes o chamado “Kit Covid”, formado geralmente por medicamentos como ivermectina (indicado contra parasitas como os piolhos), hidroxocloroquina e azitromicina, além de vitaminas variadas — que já foram foco de inúmeros estudos que as descartam como eficientes diante do coronavírus.

Em Natal, centro da região metropolitana considerada o epicentro da Covid-19 no Rio Grande do Norte, o prefeito Álvaro Dias (PSDB) é defensor da ivermectina e protagoniza uma queda de braço com a governadora Fátima Bezerra (PT).Enquanto ela endureceu restrições para conter a doença no estado, ele afrouxou as normas na capital: ampliou o horário de funcionamento do comércio e recomendou mais uma vez, de maneira oficial, os tratamentos sem eficácia.

“Fica recomendada a realização da quimioprofilaxia terapêutica ou preventiva da população, assegurado ao profissional médico a liberdade de prescrição pré hospitalar dos medicamentos que ele entender como eficazes”, definiu Dias em decreto do dia 6 de março.

Médico pediatra, o tucano defende a ivermectina há meses e, em fevereiro, declarou que o remédio é “extremamente necessário e benéfico para evitar a disseminação da doença e ajudar a reduzir a carga viral”. O texto, disponibilizado on-line pela prefeitura de Natal, não tem base científica.

Ao GLOBO, a administração de Diasa firmou que a ivermectina não é distribuída “como

se fosse jogada pela janela para o povo”. E que pacientes passam por triagem em unidades de saúde e saem delas com o kit em mãos, a partir da prescrição médica.

SEM VACINA E COM REMÉDIO

Em Itajaí (SC), onde o prefeito Volnei Morastoni (MDB) já providenciou ivermectina para mais de 110 mil pessoas, de acordo com dados da gestão dele, o medicamento continua sendo distribuído ininterruptamente, ao contrário da vacinação, que precisou ser pausada na primeira quinzena de março após se esgotarem as doses.

Apesar de ter sido cobrado no ano passado pelo Tribunal de Contas estadual a respeito da falta de respaldo científico para a aquisição do remédio com dinheiro público, Morastoni não abriu mão da distribuição e a mencionou em uma transmissão, no último dia 17.

— Um dos protocolos é a ivermectina, e, quando o paciente é positivo, nós dobramos a dose por cinco dias. Depois, entra algum antibiótico. Aí, pode entrarcorticoide, anticoagulante. Isso tudo a critériomédico—listou o prefeito.

Em MinasGerais, o discurso pró-tratamento precoce levou consequências a pelo menos dois municípios. Após um surto de novos casos e mortes em Itajubá, no sul do estado, o prefeito Christian Gonçalves (DEM) anunciou a distribuição gratuita de ivermectina, zinco e vitamina D, a partir do dia 15 de março. A cidade chegou esta semana ao total de 213 mortos desde o início da pandemia, número mais alto entre os municípios da região.

Parlamentares do PT já acionaram o Ministério Público (MP) de Minas Gerais para impedir a distribuição do medicamento em postos de saúde. O vídeo foi apagado.

A promotoria de MG também mira a situação de São Lourenço, onde o prefeito Walter José Lessa (PTB) publicou vídeos nas redes sociais este mês falando sobre supostos benefícios do “Kit Covid”. Ele sugeriu que pacientes teriam começado a melhorar após receberem os medicamentos.

Um procedimento do MP apura denúncias de que a prefeitura está incentivando o uso dos medicamentos. Ao todo, São Lourenço soma 56 óbitos e atingiu, na semana passada, a lotação máxima de seus leitos de UTI.

PREFEITO AMEAÇADO

Em Araraquara (SP), uma das primeiras cidades a decretar lockdown em meio à segunda onda de Covid-19, o prefeito Edinho Silva (PT) foi ameaçado de morte em uma rede social e registrou boletim de ocorrência ontem. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo, o caso está sendo investigado. Na noite de sábado, um internauta postou: “Alguém sabe onde o prefeito Edinho mora?”. Nos comentários, além do endereço, outros usuários escreveram ameaças ao petista.