O Globo, n.32012, 30/03/2021. País, p.4

 

Reforma ministerial

Jussara Soares

Julia Lindner

Paulo Cappelli

Natália Portinari

Eliane Oliveira

30/03/2021

 

 

BOLSONARO MIRA CENTRÃO E MILITARES AO TROCAR SEIS PASTAS

Pressionado pelo Congresso e irritado com o que julga ser uma falta de alinhamento de setores militares ao governo, o presidente Jair Bolsonaro realizou ontem a primeira reforma ministerial da gestão. De uma única vez, o comando de seis pastas foi alterado, em um movimento que abriu as portas da articulação política para o Centrão e rifou o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, que, segundo o presidente, não defendia o governo. No Itamaraty, Ernesto Araújo deixou o cargo, após inviabilizar a relação com deputados e senadores. Outro que não terá mais assento nas reuniões ministeriais é José Levi, demitido da Advocacia-Geral da União (AGU) após se recusar a assinar uma ação em que a União questionava a conduta de governadores na pandemia.

A mudança envolveu duas das quatro pastas sediadas no Palácio do Planalto. A deputada Flávia Arruda (PL-DF), mulher do ex-governador José Roberto Arruda e aliada do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), assumirá a Secretaria de Governo, responsável pela interlocução com o Congresso. Luiz Eduardo Ramos deixou a pasta para assumir a Casa Civil, no lugar de Braga Netto, remanejado para a Defesa.

As mudanças começaram com a demissão de Ernesto Araújo do Itamaraty. Após enfrentar publicamente a senadora Kátia Abreu (PP-TO) ao sugerir que a pressão do Congresso por sua queda se devia a interesses relativos ao leilão da tecnologia 5G e não a vacinas, o chanceler reuniu-se com sua equipe na manhã de ontem e avisou que pediria para deixar o cargo. No fim do dia, Carlos Alberto França, ex-chefe do cerimonial do Planalto, foi anunciado para a vaga.

Na área jurídica, o espaço na AGU será preenchido por um antigo ocupante: André Mendonça, que iniciou o governo Bolsonaro no cargo, voltará ao posto após uma passagem de quase um ano no Ministério da Justiça e Segurança Pública. No lugar de Mendonça, foi escolhido o secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Anderson Torres, delegado da Polícia Federal e ligado à bancada da bala.

A ida de Ramos para a Casa Civil e de Braga Netto para a Defesa foi feita dentro de um remanejamento dos militares do governo, privilegiando aqueles que têm mais alinhamento com Bolsonaro.

A demissão de Fernando Azevedo e Silva no início da tarde foi o que descortinou que a mudança no primeiro escalão não se resumiria à substituição de Araújo. Demitido em uma rápida conversa, ele divulgou uma nota em que diz que preservou “as Forças Armadas como instituições de Estado”.

A decisão teve como estopim uma entrevista concedida ontem pelo general Paulo Sérgio, chefe do Departamento Geral de Pessoal do Exército, ao jornal Correio Braziliense. À publicação, o militar disse que o Exército já se preparava para a terceira onda da pandemia de Covid-19.

Segundo interlocutores do Planalto, Bolsonaro, que tenta conter o desgaste no pior momento da crise sanitária, não gostou da declaração e pediu uma punição ao general. O comandante do Exército, Edson Leal Pujol, resistiu e teve o apoio de Azevedo. Diante da demissão do ministro, os comandantes discutem se colocam também seus cargos à disposição.

Segundo a colunista Malu Gaspar, Azevedo disse a interlocutores próximos que sua saída ocorre porque ele não queria repetir o que viveu em maio do ano passado, quando bolsonaristas realizaram diversas manifestações pedindo intervenção militar e atacando o Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, ele disse que as Forças Armadas são “organismos de Estado”.

A entrega da articulação política do governo ao centrão sela o fim do discurso que elegeu Bolsonaro em 2018, contra o “toma lá, dá cá”. Após o movimento de aproximação realizado no ano passado com o temor de um processo de impeachment, o presidente já tinha, em fevereiro, entregue ao grupo a pasta da Cidadania, com a indicação do deputado federal João Roma (Republicanos-BA).

O grupo, porém, tinha mais reivindicações e vinha aumentando o tom contra o governo após o presidente ter ignorado indicações para o Ministério da Saúde ao escolher, há 15 dias, Marcelo Queiroga para a vaga de Eduardo Pazuello. Ernesto Araújo era o alvo do momento — sob o argumento de que sua condução no Itamaraty dificultava a articulação para obtenção de mais vacinas contra a Covid-19 —, mas o presidente estava informado de que outros auxiliares estavam na mira.

Reclamações sobre a articulação política do governo ocorrem desde o ano passado, mas o presidente sempre teve confiança em Ramos, seu amigo de longa data. O movimento realizado ontem dá poder ao general, que assume a Casa Civil e fará a gestão administrativa do governo, mas tem como principal mudança efetiva abrir espaço para que os políticos tomem conta das negociações com o Congresso.

Flávia é integrante do PL, comandado por Valdemar Costa Neto, um dos principais líderes do Centrão. O partido tem 40 deputados e três senadores. Ela é próxima a Lira e foi indicada por ele para a presidência da comissão de Orçamento. Ontem pela manhã, Bolsonaro recebeu o presidente da Câmara no Palácio da Alvorada.

A pasta não tem recursos, mas tem como tarefa fazer a intermediação política, e uma das principais funções está fazer junto aos ministérios a liberação de emendas parlamentares, além de recursos extras que o governo eventualmente oferece para apadrinhamento por deputados e senadores.

SEM ASSINATURA

Outra demissão que teve como pano de fundo a falta de alinhamento com o presidente foi a do advogado-geral da União. Levi é técnico de carreira da instituição e, ao contrário de Mendonça, nunca se aproximou de Bolsonaro. A recusa em assinar a manifestação ao STF sobre as medidas restritivas terminou por concluir a insatisfação que já ocorria desde quando assumiu, pois logo no início do trabalho também não assinou habeas corpus em favor do então ministro da Educação Abraham Weintraub, tarefa que coube a seu antecessor que já estava na Justiça.

O retorno de Mendonça à AGU abriu a possibilidade de o presidente se reaproximar da bancada da bala, grupo do qual andava distante. O novo ministro, Anderson Torres, que era secretário de segurança do Distrito Federal, tem ligação histórica com o grupo e se aproximou da família Bolsonaro por ter sido chefe de gabinete do deputado Fernando Francischini (PSL-PR), um dos primeiros apoiadores de Bolsonaro para sua campanha presidencial de 2018. Ele também é próximo do ex-deputado Alberto Fraga, amigo do presidente, e de Jorge Oliveira, ex-ministro de Bolsonaro que ocupa uma cadeira no Tribunal de Contas da União (TCU).

Todas essas mudanças foram precipitadas pela situação de Araújo. O ataque feito por ele a Kátia Abreu no domingo foi o epílogo da falta de condições políticas para sua permanência no cargo. Ainda que respaldado pela militância mais radical e com o apoio do deputado Eduardo Bolsonaro, Araújo dinamitou qualquer possibilidade de superar a crise no cargo.