Valor Econômico, n. 5202, v.21, 06/03/2021. Brasil, p.A4

 

 

 

Privatização ameaça centro de pesquisa

 

Projeto de venda da Eletrobras prevê fim do financiamento de núcleo referência na América Latina

Por Daniel Rittner — De Brasília

 

A privatização da Eletrobras lança dúvidas sobre a sobrevivência do Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel), criado em 1974, que se tornou referência na América Latina em inovações no setor. Com um quadro de 270 pesquisadores e orçamento em torno de R$ 200 milhões anuais, a instituição ainda tem 80% de suas receitas provenientes da estatal.

 

A MP 1.031, medida provisória publicada na semana passada para acelerar o processo de privatização, prevê que a “nova” Eletrobras não terá mais que fazer contribuições financeiras ao Cepel depois de quatro anos - contados a partir da perda de controle acionário pelo governo. Os aportes compulsórios serão reduzidos à razão de 25% por ano.

 

A grande pergunta, entre dirigentes e funcionários do centro, é sobre a viabilidade de repor todo esse financiamento por meio da venda de produtos e serviços a clientes privados. Essa fonte de recursos tem crescido gradualmente, mas ainda é considerada insuficiente para substituir os aportes da Eletrobras e de suas subsidiárias. Outros associados a instituição de pesquisa - grupos como CTEEP, Engie e WEG - fazem contribuições bem menores.

 

“Podemos caminhar para uma vida sem a Eletrobras, mas não pode ser de uma hora para outra”, afirmou ao Valor o diretor-geral do Cepel, Amilcar Guerreiro. “São quase 50 anos vivendo sob uma mesma estrutura de financiamento. Não sei se quatro anos são tempo suficiente para fazer essa transição. Eu diria que é pouco.”

 

Outros são mais enfáticos e avaliam que sua existência está ameaçada. “Tal como foi enviada pelo governo ao Congresso, a MP põe o centro na UTI e à beira da morte”, afirma Ikaro Chaves, diretor da Associação de Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras. “Perder o Cepel é perder a cabeça pensante do setor elétrico brasileiro.”

 

Com 34 laboratórios, o centro tem um histórico de inovação. Todo o sistema interligado nacional, que permite a transferência de grandes “blocos” de energia entre regiões de um país com dimensões continentais, é operado a partir de modelos e softwares desenvolvidos pelo Cepel, como o Newave.

 

 

Uma de suas unidades, em Adrianópolis (RJ), tem um laboratório que permite ensaios em linhas de transmissão de ultra-alta tensão - como a que liga a hidrelétrica de Belo Monte ao Sudeste - como se os técnicos estivessem em campo. O centro vem trabalhando agora com pesquisas na geração eólica, inclusive sobre a integridade estrutural de pás aerogeradoras e um programa envolvendo tintas anticorrosivas, a fim de evitar problemas em usinas perto do litoral.

 

Guerreiro, do Cepel, reconhece que há espaço para buscar mais clientes privados, mas faz um alerta: “Em nenhum lugar do mundo um centro de pesquisas sobrevive apenas com a venda de seus produtos e serviços. Até porque inovação decorre também de falhas, do que não deu certo e como aprendemos com essas experiências”.

 

Outras instituições de excelência ainda têm respaldo estatal. Nos Estados Unidos, o Departamento de Energia gerencia 17 laboratórios - os mais similares ao Cepel (Oak Ridge e NREL) operam com aporte governamental na faixa de 80% a 85%. O Korea Electric Power Research Institute é subsidiária da “Eletrobras coreana”. No México, um instituto similar é um órgão da administração pública.

 

Dezenas de emendas parlamentares à MP abordam o Cepel. O senador Jean Paul Prates (PT-RN) propôs esticar o “desmame” para dez anos, com corte de 10% ao ano nas contribuições associativas da Eletrobras, em vez dos quatro anos originais. “O patrimônio tecnológico construído ao longo de mais de 45 anos não deve ser colocado em risco pela adoção de um cronograma irrealista de desvinculação da Eletrobras”, afirma Prates. O deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP) sugere prazo de 12 anos.

 

Para Chaves, da associação de engenheiros e técnicos, não se trata só de buscar uma “emenda salvadora” na MP para garantir financiamento ao Cepel. Com uma Eletrobras sob controle privado, diz, aumenta a chance de a empresa buscar “soluções prontas” no mercado, inclusive importadas, em vez de desenvolvê-las internamente.

 

“O Cepel inova e desenvolve porque tem demanda da Eletrobras. Uma empresa privada pode ir atrás de pacotes completos trazidos de fora. O futuro do centro pode ser o de mero homologador de equipamentos”, completa Chaves.

 

O Ministério de Minas e Energia disse que o prazo de quatro anos permite ao Cepel uma transição visando novas fontes de recursos. “Ressalta-se que as contribuições da Eletrobras poderão continuar sendo feitas, [segundo] uma decisão de competência da empresa”.