Valor Econômico, n. 5203, v.21, 09/03/2021. Brasil, p.A6

 

 

Gestão na saúde coloca Bolsonaro na mira de corte internacional

 

Para juíza brasileira que atuou em tribunal de direitos humanos, administração falha configura crime contra a humanidade

Por Assis Moreira — De Genebra

 

 

Existe possibilidade de o governo brasileiro ser condenado por tribunal internacional por violações sucessivas de direitos fundamentais à saúde, incluindo a atuação em relação à pandemia de covid-19. E isso pode vir não pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), e sim pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A avaliação é de Sylvia Steiner, que foi a única juiz brasileira até agora no TPI -- entre 2003 e 2016.

 

Ela considera que a má gestão de saúde pública por si só não configura crime contra a humanidade. Ou seja, o TPI não tem competência para julgar políticas públicas, por mais desastrosas que sejam.

 

A ex-juíza observa que várias denúncias protocoladas no TPI contra Bolsonaro já foram rejeitadas liminarmente, por não ter ficado configurado crime descrito no Estatuto de Roma, tratado que criou o tribunal.

 

O estatuto define crime contra a humanidade como um ato cometido como parte de ataque sistemático ou generalizado diretamente contra populações civis, com conhecimento do ataque.

 

“Continuo achando que essa matéria [reação do governo à pandemia] é perfeita para a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esta julga políticas. O TPI julga pessoas”, disse.

 

Sylvia Steiner vê muita chance de progredir uma denúncia junto à CIDH não apenas contra o presidente Jair Bolsonaro, e sim contra o governo, portanto incluindo ministros e outras autoridades.

 

A ex-juíza observa que as organizações não governamentais são muito ativas e já deve ter uma série de queixas na CIDH contra o atual governo. E um volumoso número de denúncias pode “impressionar”, levando a corte a considerar que “onde tem fumaça, tem fogo”, e os juízes resolverem então investigar a situação no país.

 

Neste ano, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) denunciou o governo federal à CIDH, por sua atuação no combate à pandemia. A OAB pede para a corte apurar os atos praticados pelo Estado brasileiro que atentem aos direitos humano.

 

Concretamente, a CIDH, se condenar o governo brasileiro, pode determinar tomada de providências urgentes pelo governo.

 

Já existe um precedente que ocorreu durante o atual governo. Foi uma ordem dada pela CIDH para o governo brasileiro adotar as medidas necessárias para proteger os direitos à saúde, à vida e à integridade pessoal dos membros dos Povos Indígenas Yanomami e Ye’kwana, “implementando, de uma perspectiva culturalmente apropriada, medidas preventivas contra a disseminação da covid-19, além de fornecer assistência médica adequada em condições de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade, de acordo com os parâmetros internacionais aplicáveis”.

 

No fim, segundo Steiner, a corte pode condenar o governo brasileiro a diversos tipos de reparações às vitimas, coletivas ou individuais, se decidir que houve omissão deliberada do governo na má condução das políticas de saude.

 

As notícias de queixas em tribunais internacionais contra o governo Bolsonaro ampliam a imagem negativa dele na cena internacional e, por tabela, trazem um custo adicional ao país como um todo.