Valor Econômico, n.5212, 22/03/2021. Brasil, p.A7

 

Em quadro de piora da pandemia, país ruma para ‘abismo de renda’

Hugo Passarelli

22/03/2021

 

 

Para economistas do Ibre, endividamento crítico complica cenário

Num cenário de recrudescimento da pandemia e lento avanço da vacinação, o Brasil está próximo de um “choque patrimonial” no orçamento das famílias, o que adiciona incerteza sobre a recuperação do consumo. A economia já tem contratada uma desaceleração, ainda que temporária, no primeiro semestre, com dois trimestres de queda de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), na previsão do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV).

A massa real ampliada de rendimentos dos trabalhadores deverá cair 7% em 2021, depois de subir 3,4% no ano passado com ajuda das transferências governamentais, sem as quais o indicador teria mostrado retração de 5,7%, calcula o Ibre/FGV. Os números já descontam a inflação.

No fim de 2020, as famílias já se encontravam com pouco fôlego financeiro, com índice de endividamento de 56,4% em relação à renda dos últimos 12 meses, o maior percentual já registrado, segundo dados do Banco Central.

“As pessoas nunca estiveram tão endividadas e nunca comprometeram tanto da sua renda. Um eventual ciclo de consumo futuro concorre com as famílias numa situação de corda no pescoço”, resume Lívio Ribeiro, pesquisador do Ibre/FGV. A esperada melhora das condições sanitárias no segundo semestre não elimina a dificuldade de retomada. “O governo fez um pacote de ações para evitar o buraco e uma recuperação forte da atividade via mercado de trabalho parece difícil mesmo num cenário em que tudo dê certo”, diz ele.

Segundo o Ibre/FGV, a taxa de crescimento da população ocupada entre aqueles com mais de 15 anos de estudo foi de 4,8% em 2020, ante uma queda de 11,4% para quem possui menos de 14 anos de estudo. Entre os informais, os com mais estudo observaram taxa de crescimento de 1% na ocupação no ano passado, em comparação com recuo de 14,4% entre os de menor escolaridade. Os dados foram extraídos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua.

“Há muita incerteza sobre a duração e a intensidade dessa segunda onda e as cicatrizes que ficarão para as empresas e famílias. Este primeiro semestre é muito desafiador”, afirma Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Ibre/FGV.

A estimativa do Ibre é que a taxa de desemprego termine 2021 em 15,6%, de 13,5% na média do ano passado. Além do mercado de trabalho ainda fraco para os informais, a inflação pressionada e o ciclo de alta dos juros completam o quadro de “abismo de renda”, na definição do Ibre/FGV. No acumulado em 12 meses, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) deve bater em 8% em meados do ano, nas estimativas do instituto.

O PIB deve recuar 0,5% no primeiro trimestre em comparação com os três últimos meses de 2020 e mais 0,5% no segundo trimestre, segundo o Ibre. O cálculo considera as restrições à circulação impostas desde o início do ano, mas ainda sem computar a chance de “lockdowns” ou fechamento mais extenso da economia. Também está contemplada a nova rodada do auxílio emergencial, que vai injetar R$ 44 bilhões na economia a partir de abril, assim como outros R$ 50 bilhões de antecipação do 13º salário para abril e maio.

“Essa pandemia é tão heterogênea e desigual que os dados agregados dizem muito pouco sobre o que está acontecendo na economia”, explica Silvia. No fechado de 2020, o PIB deve subir 3,2%, abaixo do carrego estatístico de 3,6% deixado por 2020. Ou seja, o crescimento deste ano será, em média, inferior ao observado nos três últimos meses do ano passado. A velocidade de recuperação ainda é mais lenta nos serviços, principalmente naqueles prestados às famílias e dependentes da circulação de pessoas.

O quadro inspira cautela e há risco de piora a depender do ritmo de vacinação e capacidade do governo de conter a crise sanitária. “É difícil traçar cenários em meio a uma crise sanitária como essa. Do jeito como a pandemia está vindo, vai ser difícil conter a necessidade de mais gastos”, afirma Luiz Guilherme Schymura, presidente do Ibre/FGV.

De todo modo, Schymura considera que, em meio ao acúmulo de diversas crises, há espaço para relativo otimismo, dado os avanços institucionais, como a autonomia do Banco Central (BC) e a preservação do teto de gastos.

A visão menos negativa é compartilhada por Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre/FGV. “Aparentemente, países que passaram por uma segunda onda da pandemia pesada não tiveram mesmo impacto sobre a atividade econômica como teve a primeira onda. O que pode complicar é que o ciclo de bens industriais está passando e talvez apareça aí um hiato”, afirma ele.

Os sinais de piora no curto prazo são antecipados pelos índices de confiança. Uma prévia das sondagens da FGV, com dados coletados até o dia 10 de março, apontou quedas de 5 pontos do Índice de Confiança Empresarial (ICE) e de 7,8 pontos do Índice de Confiança do Consumidor (ICC), equivalentes a recuos, ante o mês anterior, de 5,5% e 10%, respectivamente. Se confirmadas, as retrações serão as mais intensas por essa comparação desde abril de 2020, especialmente para o comércio e os serviços.