Valor Econômico, n.5214, 24/03/2021. Brasil, p.A6

 

País passa das 3 mil mortes e curva continua crescendo

Marina Falcão

24/03/2021

 

 

 

 

País tem recorde de 3.158 óbitos em 24 horas; casos também aceleram

 

O país ultrapassou ontem pela primeira vez a marca de 3 mil mortos por covid-19 em um dia. O Ministério da Saúde já tinha previsto que essa cifra era inevitável e especialistas dizem que o pico da pandemia no Brasil ainda pode estar longe.

Mesmo dobrando o ritmo atual de vacinação, o físico Domingos Alves, professor da USP de Ribeirão Preto, avalia que não é possível prever recuo dos óbitos no país até o fim do primeiro semestre. Para ele, o Brasil pode alcançar 5 mil mortos por dia em julho e meio milhão de vítimas fatais da pandemia.

Em 24 horas, o número de mortes chegou a 3.158 (até 20h de ontem), segundo o consórcio de veículos de imprensa. Com isso, desde a chegada da pandemia, o país soma 298.843 mortes pela doença. A média móvel de óbitos foi de 2.349, também recorde, com crescimento de 49% ante à semana móvel anterior. A média de mortes bate recordes há 25 dias seguidos, desde 27 de fevereiro.

O total de casos chegou a 85.056 ontem, superando 12,1 milhões de infectados no país. A média móvel de casos é de 75.288 por dia na semana, 9% mais que no período anterior.

Nas próximas semanas, o cenário pode se deteriorar de maneira que nenhum modelo estatístico consegue prever, diz Alves. Isso porque as projeções não incorporam de maneira imediata as crescentes mortes por falta de atendimento nos hospitais, já que muitos pacientes vão a óbito sem o diagnóstico confirmado. “Se colocássemos isso no modelo estatístico, o cenário de 3 mil ou 4 mil mortes por dia fica otimista”, diz.

Para Alves, seria possível evitar esse cenário com uma aceleração muito grande da vacinação, o que depende do cumprimento dos prazos de entrega de imunizantes contratados pelo Ministério da Saúde. Considerando apenas as vacinas da Fiocruz e do Butantan, é possível no máximo dobrar a velocidade de vacinação, o que levaria o país a chegar a 30% da população imunizada até o fim do ano. A partir daí, a experiência em Israel mostra que ocorre considerável queda das internações e mortes. “Quando passou de 28% da população vacinada, houve queda de 60% das mortes em Israel.”

Para o infectologista Hélio Bacha, do Hospital Albert Einstein, o Brasil vive hoje uma tragédia que já era prevista desde a segunda quinzena de dezembro. Na época, era nítida uma aceleração logarítmica no número de casos.

O Brasil não teve uma vigilância de mutação eficaz, diz. Juntamente com a alta transmissão, aumentam as chances de surgimento de novas variantes do vírus. “Não existe mutação fora do organismo. A transmissão no Brasil se dá fundamentalmente pelo comportamento das pessoas”, afirma.

Para Bacha, a pouca adesão ao distanciamento social no Brasil, ocorre, entre outros motivos, porque as pessoas perderam a confiança de que o vírus pode ser evitado, o que é potencializado pela necessidade de trabalhar. “É preciso um discurso único de estímulo por parte das autoridades.”

Bacha julga necessário um isolamento imediato da população no patamar mínimo de 60%, além de uma aceleração da vacinação, para frear a contaminação. Ele calcula que, no momento, o Brasil deveria estar vacinando 1 milhão de pessoas por dia, no mínimo, para mitigar a tragédia.

O Albert Einstein tem 288 pacientes internados com a doença, dos quais 154 em UTIs. Desses, 58 estão entubados. “Todos estamos trabalhando no nosso limite. Só não estou trabalhando quando estou dormindo, cinco horas por noite”, diz Bacha. O Hospital não revelou a taxa de ocupação de leitos, afirmando apenas que “quase todos os dias abre novos leitos para atender a todos”.

Professora da USP e membro do Observatório Covid-19BR, Lorena Barberia diz que a informação mais robusta para se analisar o momento da pandemia é a curva de casos graves (hospitalizações). Na mais recente atualização semanal da plataforma, é possível verificar um pequeno recuo no número de casos graves em alguns Estados, mas para concluir se há sinais de desaceleração, é preciso analisar um período de várias semanas. “O que temos de concreto é uma sequência longa que vem desde o início do ano com crescimento dos casos graves. E o mais preocupante é que é ao mesmo tempo em quase todos os Estados.”

Ela diz que é crucial uma comunicação mais assertiva por parte do poder público. “Ao conceder o auxílio, é preciso deixar claro qual conduta se espera do cidadão. Na primeira onda, a mensagem ficou confusa, com as pessoas se aglomerando em filas de bancos e lotéricas”, afirmou.