Valor Econômico, n.5217, 29/03/2021. Brasil, p.A7

 

Doença faz país regredir duas décadas em mortalidade

Ana Conceição

29/03/2021

 

 

Demógrafa Márcia Castro diz que expectativa de vida ao nascer cairá pelo menos dois anos e que país precisa de um “lockdown” sério, não de feriadões

O impacto da pandemia de covid-19 fará o país perder duas décadas de progresso nos indicadores de mortalidade, afirmou Márcia Castro, demógrafa e professora da Universidade Harvard, durante a Live do Valor, na sexta-feira.

Essa regressão será provocada não só pelos óbitos por covid-19, mas por todas as doenças que não foram tratadas devido ao colapso do sistema de saúde. Na média, o Brasil vai perder quase dois anos na expectativa de vida ao nascer por causa das mortes provocadas pela covid-19 em 2020, em um cenário “bem conservador”, segundo ela, que fez um estudo sobre o assunto e que está sendo revisado.

“Certamente, o impacto passa de dois anos, se fizermos algum ajuste por mortes que não foram diagnosticadas como provocadas por covid-19, mas que ocorreram por causa da doença. Isso traz o Brasil de volta a níveis entre 2011 e 2013, dependendo do cenário que a gente usa.”

A região Norte, segundo Castro, é a que mais perde. A queda da esperança de vida ao nascer na região passa de quatro anos. Haverá um impacto adicional das mortes de 2021. Em apenas três meses, alguns Estados já superaram o número de óbitos do ano passado. Outros observam metade de todos os óbitos de 2020. “O efeito demográfico da pandemia em 2021 vai ser maior que em 2020”, diz.

Sempre que há uma queda na expectativa de vida ao nascer, espera-se que haja uma retomada depois que o evento que a causou termina. É o que ocorreu na gripe espanhola. Mas a demógrafa não acredita que haverá essa recuperação no Brasil por causa do excesso de mortes causadas pela covid.

Ela lembra que todos os indicadores de saúde provavelmente pioraram, o que deve afetar ainda mais os índices demográficos. As condições de saúde dos diabéticos pioraram, a detecção de câncer diminuiu, observa. Houve interrupção na vacinação infantil. “Isso vai aumentar a mortalidade. A mensagem é clara, direta e simples: o impacto demográfico dessa pandemia tira quase duas décadas de progresso em redução de mortalidade no Brasil.”

Castro ainda comentou que, no exterior, especialistas questionam o que deu errado em um país com o Sistema Único de Saúde (SUS), mundialmente conhecido por sua eficiência na resposta de epidemias como a do HIV, do zika vírus, do H1N1.

O mundo, diz a demógrafa, vê o Brasil com preocupação já que o descontrole da disseminação do vírus pode contribuir para o surgimento de variantes mais perigosas do coronavírus. “A pandemia deixou claro que você pode ter o sistema de saúde mais resiliente do mundo, mas um líder ruim pode colocar tudo a perder.” Ela citou o premiê britânico Boris Johnson, a princípio um negacionista, mas que foi contaminado, passou dias no hospital e hoje é um defensor de medidas de contenção e da vacinação. “A história dessa pandemia terá dois livros, o dos grandes líderes e dos que falharam”.

Sobre medidas de enfrentamento à pandemia, Castro observa que o país deve continuar a ver o número de casos aumentando e o de mortes também. Ela chama atenção para a necessidade de um “lockdown” sério, de 30 dias, 15 dias em algumas regiões, e não os “feriadões” de dez dias vistos em algumas cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo.