Valor Econômico, n. 5206, v.21, 12/03/2021. Brasil, p.A6

 

 

 

Bolsonaro questiona dados e ataca governadores

 

Presidente insinua que informações sobre mortes estão sendo infladas para prejudicá-lo

Por Fabio Murakawa, Mariana Ribeiro, Matheus Schuch e Isadora Peron — De São Paulo

 

 

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) atacou ontem governadores por endurecerem as restrições a fim de conter a pandemia, no momento em que as mortes causadas pelo coronavírus atingem seu nível mais elevado no país.

 

Ontem, segundo o Consórcio de Veículos de Imprensa, 2.207 pessoas morreram em decorrência da covid-19. O Valor apurou que a expectativa no Palácio do Planalto é que as cifras se mantenham acima das 2 mil mortes diárias por até seis semanas, em meio ao colapso simultâneo dos sistemas de saúde em diversos Estados. Em conversas com a equipe do Ministério da Saúde, a avaliação é que na maior parte dos dias a cifra deve oscilar entre 2.200 e 2.600 mortes. Porém, técnicos e parte da cúpula da pasta admitem a possibilidade de o pico chegar a 3 mil mortes diárias.

 

Ontem, Bolsonaro contestou dados que mostram o aumento das mortes pela covid-19, sem citar que eles são apresentados pelo próprio Ministério da Saúde. Em teleconferência com membros da Frente Parlamentar da Micro e Pequena Empresa, o presidente insinuou que os dados estão inflados porque os governadores querem prejudicá-lo.

 

“Eu não posso admitir que [“lockdown”] continue acontecendo, porque eles [governadores] não querem salvar vidas, eles querem poder”, reiterou. “Tenho vários atestados de óbito comigo, várias comorbidades, e lá embaixo está escrito: ‘suspeita de covid’. Entra na estatística como morte por covid”, disse.

 

As críticas de Bolsonaro atingiram até mesmo aliados, como Ibaneis Rocha (MDB), governador do Distrito Federal, que na segunda-feira impôs um toque de recolher no momento em que a taxa de ocupação de leitos de UTI chegou aos 100%.

 

 

“Até quando vamos resistir a isso daí. Aqui no DF, tomam medidas por decreto de estado de sítio. [...] Na verdade, uma medida extrema dessa só o presidente da República e o Congresso Nacional poderiam tomá-la. E nós vamos deixando isso acontecer”, afirmou. “Hoje é das 22h às 5 horas; daqui a pouco, ele [Ibaneis] bota das 20h às 6 horas; depois bota de 18h às 8 horas.

 

Bolsonaro disse que, em suas “andanças” tem ouvido que “o povo quer trabalhar”. E afirmou que as medias são adotadas para atingi-lo, em uma referência ao governador de João Doria, de São Paulo, seu rival político.

 

“E quem rema contra isso aí? Com que intenção? Não vou falar que não tem coração, porque coração já demonstrou que não tem. Agora, tem uma tremenda ambição. Parece que tem gente que está lutando pelo poder.”

 

Mais tarde, em sua live semanal no Facebook, Bolsonaro incluiu o governador do Rio Grande do Sul, o também tucano Eduardo Leite, nos ataques a Doria.

 

Proferindo palavrões, Bolsonaro chamou Doria de engomadinho que “fala fino” e está preocupado com 2022.

 

“Agora [Doria] tem outros amiguinhos em outro Estado mais ao sul também”, disse Bolsonaro antes de proferir outro palavrão para dizer que a relação entre Doria e Leite tem “ciúmes de homem”.

 

A avaliação no Planalto é que Bolsonaro voltou a “perder a narrativa” da pandemia. Inicialmente, havia conseguido colar nos governadores a pecha de haverem gerido mal os recursos federais enviados para o combate à pandemia. Auxiliares temem que o presidente carregue a responsabilidade pela alta de mortes que está por vir.

 

O discurso ontem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva aumentou os temores no entorno de Bolsonaro quanto à sua responsabilização política pela tragédia e acendeu alertas quanto à possibilidade de reeleição.

 

O ministro das Comunicações, Fábio Faria, e o recém-empossado secretário especial de Comunicação Social, almirante Flávio Rocha, trabalham para tentar melhorar a imagem do presidente. Foi deles a ideia de que Bolsonaro aparecesse de máscara ontem em uma solenidade no Planalto, horas após a fala de Lula.

 

Uma fonte militar afirma que Bolsonaro não tinha até ontem adversário, o que ocorreu com a anulação das condenações contra o petista. A reeleição, que parecia assegurada pela falta de um rival à altura, pode estar ameaçada a depender das costuras feitas por Lula, do andamento da pandemia, da retomada da economia.

 

Bolsonaro tem usado a decisão do STF que estabeleceu que União, Estados e municípios deveriam atuar em conjunto no combate à pandemia de covid-19 para se eximir de responsabilidades frente à crise. Ele argumenta que a decisão o deixou de mãos atadas - o que reiterou ontem ao longo do dia.

 

Essa falsa alegação gerou um bate-boca no Twitter entre o ministro Gilmar Mendes, do Supremo, e o chanceler Ernesto Araújo.

 

Em uma postagem, Araújo afirmou que, após essa decisão, caberia aos governadores - e não o presidente - estabelecerem medidas de distanciamento social.

 

O comentário de Araújo foi feito para criticar uma reportagem da CNN em que dois comentaristas apontam a falta de ação de Bolsonaro em meio à escalada de mortes por covid-19 no país.

 

Gilmar afirmou que a declaração do chanceler era uma “fake news”. Ontem, Araújo pediu que Gilmar lesse de novo sua postagem e afirmou que, “na prática, os governadores tomaram todas as medidas que desejavam e o governo federal está pagando a conta”.