O Estado de São Paulo, n.46431 , 01/12/2020. Economia, p.B4

 

Entrevista - Mansueto Almeida: "Só aumentar gasto não resolve pobreza no País"

Adriana Fernandes

01/12/2020

 

 

 

 

Para economista, Brasil precisa cortar renúncias fiscais para evitar nova alta dos impostos

Integrante do governo até há poucos meses, o economista Mansueto Almeida costumava ser apontado como o "bombeiro" do ajuste pela habilidade de apagar incêndios a cada tentativa de aumento de gasto, subsídios e incentivos fiscais. Fora da equipe econômica, mas observador atento das contas públicas, o ex-secretário do Tesouro Nacional alerta que o País precisa começar já um debate sobre a revisão das renúncias fiscais para não haver aumento de impostos mais à frente.

Oitavo entrevistado da série do Estadão que discute saídas para a crise fiscal, Mansueto compara a revisão das renúncias ao movimento que ocorreu no passado recente e que permitiu a redução dos subsídios, via bancos públicos, e a aprovação da reforma da Previdência. Ele diz que o corte é difícil, mas necessário. Em 2002, as renúncias correspondiam a 2% do PIB. Hoje, são 4%. "Mesmo que no futuro aumente a tributação sobre os mais ricos, se entrarmos numa trajetória com déficits fiscais tão grandes, vai aumentar a tributação em cima de todo mundo", afirma Mansueto.

Do grupo de economistas fiscalistas, que defende o ajuste das contas públicas para o Brasil crescer, Mansueto afirma que o Brasil gasta muito, embora o que consiga de redução de desigualdade é muito pouco. "Eu defendo ajuste fiscal com melhor distribuição de renda", diz o ex-secretário que assumirá em janeiro o cargo de economista-chefe do BTG.

É possível para o governo sair de cena, retirando estímulos, numa segunda onda da covid-19?

Se tiver uma segunda onda, o governo não vai ter o mesmo espaço para reagir da forma que fez na primeira. Esse vai ser um problema. O setor público só voltará a ter superávit em 2027, mesmo cumprindo o teto de gastos. É um período muito longo. Se tiver segunda onda, possivelmente teremos de fazer coisas mais radicais no período depois da segunda onda.

De qualquer forma? A população precisará ser assistida?

Sim, vai. Mas não precisa gastar exatamente o que gastou agora. Por exemplo, havia pessoas do Bolsa Família que há anos recebiam R$ 190 por mês (benefício médio do programa) e era o programa social mais bem avaliado. Nessa crise, quando foram instituídas as novas regras do auxílio emergencial, parte das pessoas do Bolsa que recebiam R$ 190 por mês passou a receber R$ 1,2 mil. É claro que tem de proteger as pessoas de baixa renda. Será que não se exagerou no desenho dos programas? Essa é a questão.

Com a pandemia, o ajuste fiscal se transformou na antítese do combate à desigualdade social. Os fiscalistas, grupo que o sr. integra, são vistos pelos críticos como vilões. Como o sr. vê essa polarização?

Estão polarizando de forma errada. Existem vários estudos acadêmicos que mostram que o Brasil tributa muito. A carga tributária até 2019 era em torno de 33% do PIB. É muito acima da média. O problema do Brasil não é gasto público baixo. Ninguém está defendendo corte radical do gasto público. O Brasil gasta muito e o que temos de redução de desigualdade é muito pouco. Tem de mudar os programas, a composição do gasto, para privilegiar políticas mais distributivas. Eu defendo ajuste fiscal com melhor distribuição de renda. Tem de realocar o Orçamento e privilegiar programas como o Bolsa Família.

Como?

É totalmente coerente restringir o abono salarial (espécie de 14.º pago a quem ganha até dois salários mínimos). Se não há consenso para acabar com ele, se reduz o abono, pega toda a economia e fortalece o Bolsa. Dá para conciliar a agenda para melhorar a distribuição de renda do País com o ajuste fiscal. O que não dá para acontecer é aumentar a transferência de renda, gasto com saúde, com educação, quebrar o teto de gasto, aumentar a carga tributária. Se fizermos isso, o aumento da carga tributária será brutal. É engodo achar que aumentar gasto sem limite vai resolver o problema de pobreza no País. Se fosse assim, teríamos resolvido na década de 80. O Brasil tem carga tributária semelhante à da Inglaterra, mas o efeito na redução da desigualdade de renda (medido pelo índice Gini), quando olhamos o efeito da tributação e do gasto público, é metade do que ocorre na Inglaterra.

A saída do ajuste vai passar por aumento de impostos para o andar de cima, os mais ricos?

Em relação à média de 2011 e 2013, o governo federal perdeu dois pontos porcentuais do PIB de arrecadação. Vamos ter de recuperar um a dois pontos do PIB. Parte disso vai voltar com crescimento. Mas vamos ter de fazer um esforço maior na área de arrecadação. Tem de mexer com o que chamamos de benefícios tributários, aqueles regimes especiais de tributação. Não podemos ficar até 2027 com déficit primário.

De que forma?

Depois da crise, temos de rever as renúncias tributárias, começar um programa, tentar sensibilizar a sociedade para rever várias renúncias tributárias. Tem de começar por aí. Além disso, qualquer projeto que estimule crescimento da economia, como reforma tributária e maior integração com o resto do mundo, vai ajudar na arrecadação. Em último caso, se não conseguirmos cortar as renúncias e o crescimento da economia não for suficiente, lá na frente teremos de ter uma discussão de carga tributaria. É essencial avançar com o que podemos para não ter aumento de carga.

Mas rever renúncias está nos planos do governo há quatro anos e nada se consegue...

É muito difícil. Por isso, tem de começar esse debate para, ao longo do tempo, ter algum consenso para fazer uma coisa. Não vai conseguir rever todo aumento de benefícios tributários que ocorreu nos últimos 15 anos. Em 2002, eles eram 2% do PIB. Hoje, são mais de 4%. Se ganhar 1 ponto porcentual do PIB, já fico satisfeito. Mas esse debate tem de começar. Muita coisa que é difícil, que quando começa o debate, depois de algum tempo se torna viável. Como aconteceu com o programa de subsídios. O Brasil por mais de 30 anos usou bancos públicos para dar subsídios. E isso mudou radicalmente nos últimos quatros anos. A reforma da Previdência era vista como impossível há três anos e depois se conseguiu fazer.

No grupo de renúncias, o que é mais fácil cortar?

Não tem nada fácil, mas temos de começar o debate. Por exemplo, uma pessoa completou 65 anos no Brasil, a faixa de isenção do Imposto de Renda dobra. Por que o critério é idade? O critério tem de ser de renda. Quem não tem dinheiro para comprar remédio, o governo tem de ajudar. Mas tem gente com 65 que ganha renda altíssima. Esse tipo de coisa tem de explicar para mudar. Tem gente que recebe abono salarial, que são pessoas de famílias de baixa renda, que justificaria. É um benefício adicional, mas às vezes é um jovem de uma família rica que está no primeiro emprego dele, com número de horas pequeno e que tem salário de dois mínimos.

Mas o abono não está na lista de renúncias.

Não, não está. É um programa. No grupo de renúncias, estão o Simples e a Zona Franca de Manaus.

Duas renúncias muito difíceis de mudar...

O problema do nosso Simples é a faixa de qualificação muito alta (o limite de receita bruta para enquadramento no Simples Nacional é de R$ 4,8 milhões por ano). Isso é algo que deveria ser revisto. O Brasil em termos da definição de microempresa, do ponto de vista fiscal, usa a maior faixa de faturamento para classificar como benefício tributário. Outra questão de renúncia que não faz muito sentido é a tributação pelo lucro presumido (depois do Simples, o lucro presumido é o sistema mais fácil para calcular os impostos devidos pelas empresas que faturam até R$ 78 milhões ao ano. Por ele, é calculada uma base que varia de 1,6% a 32% do faturamento, conforme a atividade). Tem profissional liberal que ganha o mesmo salário, só que um é CLT (ou seja, com carteira assinada) e outro é lucro presumido, e a tributação é bem diferente. Esse tipo de coisa vai mudando aos poucos. Talvez não se consiga cortar R$ 120 bilhões, mas se conseguir R$ 40 bilhões, R$ 50 bilhões, já ajuda muito.

É cortar as renúncias para pessoas e setores específicos ou todo mundo vai pagar a conta?

Sem dúvida. Sabe a razão? O Brasil já tem um bucado de imposto ruim, imposto sobre faturamento. Por que o Brasil tem tanto imposto ruim? O mercado de trabalho não comporta de tributação o que o País precisa para funcionar. Mesmo que no futuro aumente a tributação sobre os mais ricos, se entrarmos numa trajetória com déficits fiscais tão grandes, vai aumentar a tributação em cima de todo mundo. Não só os mais ricos. A tributação dos mais ricos não será suficiente. O desafio é tentar manter o teto de gastos e rever o que for possível de renúncias e ver como a recuperação da economia vai impactar a arrecadação.

O governo prioriza no Congresso uma pauta que ainda não é fiscal...

Em algum momento, isso vai ter de voltar. Vamos ter de aprovar o Orçamento de 2021 e saber exatamente quanto é que o governo tem para gastar. Eventualmente, se houver algum atraso, entra em 2021, executando a despesa proporcionalmente, o que sempre faz quando não tem a aprovação do Orçamento. Se tivéssemos mais claro o que é o Orçamento de 2021, era melhor. Mas se nos próximos meses conseguirmos desatar esse nó, mesmo que passe do final do ano, é importante que até o final de janeiro tenhamos clareza do que será o Orçamento de 2021 e o que o governo vai colocar de fortalecimento de gatilhos na PEC emergencial. O que é preciso que fique claro nos próximos meses é qual vai ser a direção.

Não é um problema maior o Orçamento ficar para 2021?

Não vejo. O maior problema são as declarações desencontradas em relação ao teto de gastos. Todo o debate de teto de gastos que levou a incertezas foi muito mais sério do que atraso na aprovação do Orçamento. Atrasar um, dois, três meses não é um grande problema.

Qual a saída para crise?

Não tem bala de prata. Nenhum país tem. Tem países numa situação muito melhor do que a gente, como a Inglaterra, que estão numa discussão já de aumento de carga tributária no pós-covid. Estamos caminhando para um cenário que o ajuste fiscal terá de continuar nesse governo e será a principal pauta do próximo governo e talvez do presidente que será eleito em 2026. Não tem como terminar nesse governo.

QUEM É

Formado pela Universidade Federal do Ceará, com mestrado pela Universidade de São Paulo (USP), o economista do Ipea Mansueto Almeida foi um crítico feroz da política de subsídios governamentais via bancos públicos e manobras contábeis do governo Dilma. Em 2016, no governo Temer, trabalhou pela redução dos subsídios e criação do teto de gastos. Foi secretário de Acompanhamento Econômico, assumindo depois o comando do Tesouro, cargo que manteve no governo Bolsonaro. Em junho, deixou o governo Bolsonaro e assumirá o cargo de economista-chefe do BTG em janeiro de 2021.