Título: A VIAGEM DO PAPA
Autor: Paula Barcellos
Fonte: Jornal do Brasil, 26/02/2005, Idéias & Livros, p. 1

João Paulo II: biografia Bernard Lecomte Traduzido por Clóvis Marques Record 784 páginas R$ 69,90 Memória e identidade João Paulo II Objetiva 192 páginas R$ 29,90

À sombra da Igreja, literalmente, ele viveu os seus primeiros 18 anos. Nada que afetasse sua fé. Pelo contrário. É que o jovem polonês Karol Wojtyla cresceu num prédio marcado pela penumbra. A igreja paroquial de Wadowice, bem à frente de sua casa, bloqueava a claridade do dia. E parece que essa imagem pautou a vida de quem se tornaria o terceiro papa com mais tempo no Vaticano. Entre cinzas e holocausto, fortalecia-se a luz de João Paulo II.

Em sua mais recente biografia, escrita pelo jornalista Bernard Lecomte, a ser lançada esta semana no Brasil, é possível conhecer o homem por trás da batina. Através dessas quase 800 páginas, os discursos, pregações e reflexões sobre o século 20, fruto de 26 anos de papado, e compilados em Memória e identidade, apresentam-se mais coerentes. Nem o papa fugiu à regra: é a vida explicando a obra.

Na juventude, Wojtyla não dava sinais de que se dedicaria à vida religiosa. Sua paixão estava nos palcos. Durante quase uma década, passou por várias companhias de teatro. Chegou a atuar em Kordian, de Julius Slowacki, e Antígona, de Sófocles. Mas o sucesso veio mesmo com A promessa das donzelas, comédia de Aleksander Fredo, em que o futuro papa ¿ podem acreditar ¿ interpretava um típico bon vivant, com direito a certas liberdades no casamento. Até a morte de seu pai, em 1941, o jovem polonês, de 21 anos, estava mais para candidato ao Oscar do que ao Nobel da Paz.

¿Após a morte do meu pai, fui aos poucos tomando consciência de meu verdadeiro caminho. No ano seguinte, sabia que havia sido chamado¿, conta em sua biografia. A partir daí, o jovem órfão ¿ sua mãe morreu quando era criança ¿ deu nova direção a sua veia artística para um único palco: o altar. Numa Polônia abalada pelo nazismo e comunismo, ele, ousadamente, pregava a construção de um novo mundo para os jovens.

Foi com essa filosofia que se tornou, com 58 anos, o papa João Paulo II, em 1978. Intelectual reservado, quase tímido, de rosto macilento e olhar ao mesmo tempo doce e inquieto, João Paulo ultrapassou os limites da sacristia e passou a atuar com o vigor de um ator político. Principalmente no período da queda do comunismo na Europa. A chegada de Mikhail Gorbachev ao poder na União Soviética, em 1985, não despertou esperanças no Vaticano. ¿Como poderia Gorbachev mudar o sistema sem mudar de sistema?¿, questionou o papa, na época. Não por menos ficou conhecido como o papa que derrubou o comunismo.

Sem contar seu apoio ao Sindicato da Solidariedade contra o comunismo do general Jaruzelski e sua visita a Cuba, em 1998. Em plena Praça da Revolução, o papa condenou os sistemas ateístas e o neoliberalismo capitalista, e, com sua voz trêmula, devido a problemas de saúde já frágil, porém firme, disparou: ¿Que Cuba se abra ao mundo e o mundo se abra a Cuba¿.

Outro epíteto atribuído ao papa é o ¿atleta de Deus¿. Além de na juventude ter participado de muitas partidas de futebol e braçadas na piscina, no papado, com um fôlego olímpico, realizou mais de cem viagens, inclusive ao mundo muçulmano. No Brasil, duas cenas ainda estão no imaginário social: João Paulo II ajoelhado, beijando o chão, ao pousar no aeroporto do Rio de Janeiro, e o Maracanã lotado de fiéis para assistir à celebração.

Nessa trajetória ousada, sobretudo de luta pela paz e pelos direitos humanos, nem todos os momentos foram de graça. Em 1981, foi vítima do atentado do turco Mehmet Ali Agca. A bala atravessou o corpo do santo padre, ferindo-o no ventre. O tiro pode ter sido certeiro, deixando-o por dias entre a vida e a morte, mas em nada desviou a trajetória do papa. Serviu, na verdade, como mais uma munição para sua fé: ¿Sei que não sou obra do acaso¿, declarou após visitar Agca na prisão.