O Estado de São Paulo, n46435. , 05/12/2021. Política, p.A8

 

PF apura se canais bolsonaristas são de 'laranjas' do Planalto

Patrik Camporez

Breno Pires

Rafael Moraes Moura

05/12/2020

 

 

Uma das linhas de investigação visa descobrir se Carlos Bolsonaro e outros integrantes do governo estiveram por trás de youtubers

Depoimentos tomados pela Polícia Federal no inquérito dos atos antidemocráticos indicam que uma das linhas da investigação é descobrir se o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-rj) e integrantes do governo estavam por trás dos canais do Youtube que disseminaram discurso de ódio contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Os investigadores também procuraram saber se os proprietários desses canais atuavam como “laranjas” e repassavam recursos de monetização a terceiros. As respostas foram negativas.

O Estadão revelou ontem que um inquérito sigiloso aberto em abril para apurar a organização e o financiamento de manifestações contra a democracia mostrou que o motor de arranque desses atos era um negócio lucrativo. Informações usadas em canais do Youtube ligados ao “gabinete do ódio” – núcleo de assessores comandado por Carlos, filho “02” do presidente Jair Bolsonaro – saíam de dentro do Palácio do Planalto. O ataque sempre foi direcionado a instituições e a adversários políticos, nas ruas e nas redes sociais. Com a audiência gerada pelos canais, esses youtubers faturavam pelo menos R$ 100 mil mensais, chegando a R$ 1,7 milhão num período de dez meses.

A Polícia Federal ouviu mais de 30 pessoas e questionou sobre a eventual “dissimulação da identidade” e a criação de perfil em nome de terceiros “para qualquer fim”. As perguntas evidenciam que a PF busca comprovar se os milhões arrecadados pela rede do ódio, por meio dos vídeos que divulga no Youtube, são divididos com servidores do governo e agentes políticos.

O inquérito em tramitação no Supremo tem 1.152 páginas e é conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes. As diligências deixam claro que o apoio do Planalto a canais investigados no Youtube vai além do acesso privilegiado a Bolsonaro e das orientações trocadas com funcionários da Presidência da República por meio de aplicativo de mensagem.

Na prática, as apurações revelam que o “gabinete do ódio” dá musculatura à rede de sites bolsonaristas. Nos depoimentos aos policiais federais, os donos dos canais demonstraram interesse pelos “bastidores do poder”. Enveredar por esse caminho ajuda a fidelizar o público e a aumentar a audiência, além do lucro das páginas.

As próprias transmissões ao vivo de Bolsonaro nas redes sociais, executadas com imagens recebidas de forma privilegiada pela Empresa Brasil de Comunicações (EBC), atraem milhares de internautas e impulsionam os lucros das plataformas. A EBC é um conglomerado de mídia estatal que responde pela TV Brasil, pela Agência Brasil e por diversas emissoras de rádio, incluindo a Rádio Nacional.

Incubadora. Segunda franquia mais rentável entre os canais bolsonaristas, a Folha Política tinha 1,65 milhão de inscritos no início de março. Hoje está com 2,19 milhões, um salto de 32%. Proprietário do canal, Ernani Fernandes Barbosa Neto disse à PF ter faturado entre R$ 50 mil e R$ 100 mil por mês.

Ao lado da mulher, Thais Raposo Chaves, ele opera os negócios, que incluem uma espécie de incubadora de novos perfis. A dupla também é dona da Novo Brasil Empreendimentos e da Raposo Fernandes Marketing Digital, que já prestaram serviços de marketing a políticos alinhados a Bolsonaro.

Antes do sucesso no Youtube, o casal teve 68 páginas e 43 contas derrubadas pelo Facebook, durante a eleição presidencial de 2018. As páginas faziam parte de uma rede de disseminação de desinformação, que violaram políticas de autenticidade ao criar endereços falsos e múltiplas contas.

O canal Foco do Brasil, por sua vez, contou com a ajuda de um funcionário da EBC para obter, como se fosse uma emissora de televisão, as imagens de Bolsonaro e de eventos oficiais gerados pelo satélite Amazonas 3. Anderson Azevedo Rossi, criador do canal, disse à PF que “recebeu as informações técnicas, de como acessar o satélite”, do gerente de operações da rede pública, identificado por ele apenas como “Bill”. Rossi também contou ter obtido, por meio de outro funcionário da TV Brasil, as senhas de acesso às imagens feitas pela emissora pública.

Com a transmissão em tempo real das imagens de Bolsonaro, Rossi ampliou a base de inscritos do canal, principalmente em março, abril, maio e junho, quando se multiplicaram as manifestações pedindo intervenção militar, com ataques ao Congresso e ao Supremo.

A maior parte dos proprietários de canais bolsonaristas negou ter divulgado conteúdo contra o Congresso, o Supremo e estimulado a animosidade entre as instituições e as Forças Armadas. Mas Emerson Teixeira, criador do perfil “Professor Opressor”, admitiu que “já fez publicações em seu canal do Youtube pregando intervenção militar, por meio de charges, como forma lúdica de expressar opinião”.

Teixeira disse ter participado da manifestação de 19 de abril, no QG do Exército, com a presença de Bolsonaro. Na ocasião, publicou o vídeo “Brasília pede intervenção militar com Bolsonaro no poder”. Em depoimento, ele disse achar necessária “alguma limitação aos atos praticados por alguns agentes públicos, como presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, por acreditar que a população não teria a quem recorrer diante de atos abusivos praticados por esses agente públicos”.

Acesso. Em nota, a EBC disse que o Satélite Amazonas 3 é um canal de serviço disponível de forma aberta aos veículos de imprensa (mais informações nesta

página). Não informou, porém, a lista de canais do Youtube que utilizam o satélite. A empresa observou, ainda, que o acesso em tempo real aos conteúdos sobre o governo ocorre hoje por meio do Satélite Star One C3, e não do Amazonas 3. “Por medida de segurança, a distribuição do sinal para o público externo ocorre mediante autorização prévia da EBC”, afirmou.

 

Além dos questionamentos à assessoria de imprensa da EBC, o Estadão procurou diretamente o gerente de operações da TV Brasil identificado por Rossi como “Bill”, com o pedido de informações sobre o procedimento necessário para acessar as imagens de satélite. A resposta mostrou a necessidade de um procedimento formal e de uma autorização da presidência da EBC para ter acesso às imagens geradas pelo satélite. Procurada pela reportagem desde o dia 27 de novembro, a Secretaria de Comunicação do governo não respondeu aos questionamentos feitos pelo jornal.

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Governo diz que presta esclarecimentos à Justiça

Patrik Camporez

Rafael Moraes Moura

Breno Pires

05/12/2021

 

Em nota, Secretaria de Comunicação nega ligação com organização e financiamento de ataques a instituições

A Secretaria Especial de Comunicação (Secom) do Palácio do Planalto disse que está prestando “todos os esclarecimentos” às autoridades que investigam os atos antidemocráticos. Em nota pública divulgada ontem, o órgão isentou integrantes da Presidência de ligação com o esquema de organização e financiamento de ataques a instituições. “Temos convicção de que todos os fatos serão esclarecidos em nome da mesma democracia que tanto nos acusam de desrespeitá-la. A verdade vencerá”, diz o texto.

O inquérito aponta negócio lucrativo de canais por trás dessas manifestações. Por sua vez, a nota da Secom avalia que o apoio de integrantes do Palácio a canais bolsonaristas, como destaca trechos do inquérito, é “pura ilação” e não tem “qualquer prova cabível e comprovação documental”. “Fazer co-relação com vídeos e conteúdos disponíveis publicamente na rede, em blogs de terceiros, é mero exercício de ficção, querendo impor a esse governo relação com atos antidemocráticos.”

As ligações entre membros do chamado “gabinete do ódio”, ala ideológica do Planalto, e os canais bolsonaristas foram registradas nos depoimentos colhidos pela Polícia Federal e incluídos no inquérito. “Associar integrantes do governo à produção de conteúdo antidemocrático é no mínimo irresponsável e beligerante”, diz o texto. “Não há gabinete do ódio. Não há um centavo de dinheiro público em sites antidemocráticos.”

A secretaria nega ainda ter repassado “conteúdo antidemocrático” ou dinheiro aos canais e blogs investigados. “Jamais a Secom ou integrantes do Palácio do Planalto contribuíram com conteúdos antidemocráticos. Não há apoio do governo e nenhum centavo sequer destinado a qualquer blog ou canal digital, diferentemente de outras gestões que patrocinaram com verbas públicas sites e blogs de esquerda.”

Uma planilha da própria Secom divulgada em junho pela CPMI das Fake News, no entanto, informou que propaganda sobre a Reforma da Previdência, paga pela secretaria, foi veiculada, entre 6 de junho e 13 de julho de 2019, nos canais Foco do Brasil, Terça Livre e Vlog do Lisboa. Nesse mesmo período, houve 57.044 inserções de VTS da campanha na Folha do Brasil, antigo nome do Foco do Brasil. Além disso, houve mais 1.447 inserções nos Terça Livre e 2.081 no Vlog do Lisboa. A investigação do STF passou a mirar esses canais neste ano.