O Estado de São Paulo, n.46437, 07/12/2021. Política, p.A6

 

Youtuber afirma ter faturado R$ 1,76 mi

Patrik Camporez

Breno Pires

Rafael Moraes Moura

07/12/2021

 

 

Rede de ódio. Alvo do inquérito contou ao 'Estadão' ter acesso a áreas restritas do Alvorada

Um dos alvos do inquérito policial aberto em abril pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para apurar quem organizou e financiou manifestações contra a democracia, o técnico de informática Anderson Rossi, dono do canal Foco do Brasil, afirmou que o acesso a áreas restritas do Palácio da Alvorada se deve à "simpatia" do presidente Jair Bolsonaro por sua equipe. Também se disse cauteloso na hora de fazer perguntas.

No Youtube, o canal de Rossi, que se declara apoiador de Bolsonaro, faturou US$ 330 mil em monetização – o equivalente a R$ 1,76 milhão na cotação atual de câmbio –, entre março de 2019 e maio deste ano, segundo relatório da Polícia Federal.

O Estadão teve acesso ao inquérito sigiloso e desde sextafeira tem revelado, em uma série de reportagens, o resultado das diligências da Polícia Federal. Os investigadores já sabem, por exemplo, que essa rede do ódio ganhou muito dinheiro divulgando discursos inflamados de Bolsonaro e a defesa de atos antidemocráticos, que levaram centenas de pessoas às ruas, no primeiro semestre. As manifestações pediam o fechamento do Congresso, do Supremo e até intervenção militar no País.

O faturamento desses canais, no período que coincidiu com os protestos, ultrapassou mais de R$ 100 mil por mês para alguns blogueiros, segundo informações que constam no inquérito. Os produtores são remunerados pelo Youtube, com base na visualização dos vídeos que postam, e os pagamentos são sempre feitos em dólar.

O conteúdo divulgado nos canais da rede do ódio, de acordo com as investigações em curso, é repassado por assessores de Bolsonaro. Em depoimentos à PF, esses auxiliares admitiram fazer reuniões com os blogueiros para discutir "questões do governo", conferindo a eles acesso direto ao presidente. A PF suspeita que o faturamento com a monetização seja rachado ou que os youtubers atuem como "laranjas".

O vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-rj), filho do presidente, foi citado 43 vezes no inquérito, como mostrou o Estadão. Carlos comanda o núcleo de assessores do Palácio do Planalto conhecido como "gabinete do ódio", que adota um estilo beligerante nas redes sociais e dispara ataques contra adversários do governo. Apelidado de "Carluxo" ou "02", o vereador prestou depoimento na Superintendência da PF no Rio, em 10 de setembro. Disse que nunca utilizou verba pública para manter canais e perfis em redes sociais. Não foi só: afirmou que não é "covarde" nem "canalha" para contratar "robôs".

Ao Estadão, o dono do canal Foco do Brasil revelou como tem acesso exclusivo ao presidente e às dependências do Palácio da Alvorada. "Simplesmente entramos e nunca fomos bloqueados. Inclusive, como todos sabem, também somos apoiadores. Ali é local de apoiadores", argumentou Rossi, referindo-se ao espaço, uma espécie de cercadinho, em que a militância bolsonarista costuma aguardar o presidente. "Nós gravamos com o celular".

Rossi disse que seus funcionários se identificam aos seguranças e, em seguida, seguem para áreas internas do Alvorada, onde Bolsonaro conversa com seus seguidores, longe do espaço reservado à imprensa tradicional.

 

Apartheid. Em vídeo exibido no último dia 2 pelo Foco Brasil, o presidente admitiu que é dele a ordem para que a imprensa não acompanhe suas entrevistas, assegurando apenas a seus apoiadores o direito de gravar e divulgar o conteúdo de suas declarações. "Eu não respondo a perguntas (da imprensa). Aqui já é particular, por assim dizer, minha propriedade. Lá fora, imprensa", afirmou Bolsonaro, referindo-se ao Alvorada, residência oficial dos presidentes da República.

A imprensa é proibida de entrar no que ele considera "sua propriedade" porque, na sua avaliação, "distorce" as entrevistas com interpretações maldosas. Os youtubers, porém, divulgam a íntegra de tudo o que ele diz. Com essa estratégia de "apartheid", o governo colabora apenas para que esses canais faturem com a publicação dos vídeos, uma vez que só eles terão as imagens.

"O Foco do Brasil é o único que, aparentemente, o presidente Jair Bolsonaro tem simpatia por ali. Até agora não nos bloqueou para fazer as filmagens e perguntas", destacou Rossi, o dono do canal, que tem 2,3 milhões de seguidores. Ao ser questionado por que tem acesso à área interna do Alvorada, Rossi respondeu: "Temos cautela, quando queremos fazer perguntas, pelo respeito ao momento".

Questionado pela reportagem se ainda recebe ajuda do assessor especial da Presidência Tércio Arnaud Tomaz, integrante do "gabinete do ódio", ele observou que essas conversas têm ocorrido com "pouca frequência". À PF, no entanto, o youtuber havia afirmado que não tinha mais contato com o assessor. "Ele parece ser uma pessoa muito reservada, que não é muito de conversa. Mas, com razão, por ser um assessor de confiança do presidente", declarou Rossi aos investigadores.

O inquérito dos atos antidemocráticos é conduzido no Supremo pelo ministro Alexandre de Moraes. Atualmente, o magistrado é relator de três processos que atormentam o Palácio do Planalto: além do que investiga essas manifestações, estão em suas mãos o caso das fake news e a apuração sobre a acusação de interferência indevida de Bolsonaro na PF, feita pelo então ministro da Justiça, Sérgio Moro, poucas horas antes de deixar o cargo, em abril.

As três ações fecham o cerco sobre aliados e filhos de Bolsonaro. Em outra frente, há uma CPI das Fake News tramitando no Congresso, mas os trabalhos foram interrompidos pela pandemia do novo coronavírus.

Em junho, um relatório produzido por essa CPI revelou que o governo investiu dinheiro público para veicular 2 milhões de anúncios publicitários em canais que apresentam "conteúdo inadequado".

A lista inclui páginas que difundem fake news, elogiam Bolsonaro, promovem jogos de azar e até sites pornográficos. A Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência (Secom) informou à época que não patrocina qualquer site ou blog. Disse, ainda, que os anúncios citados no relatório da CPI são veiculados por critérios técnicos adotados pelo Google Adsense. Nessa ferramenta, porém, é possível adicionar filtros que bloqueiam a veiculação em determinados sites.

 

Relações

"Não respondo a perguntas (da imprensa). Aqui já é particular, por assim dizer, minha propriedade"

Jair Bolsonaro

PRESIDENTE

 

"Nunca fomos bloqueados."

Anderson Rossi

YOUTUBER

 

PONTOS-CHAVE

Série mostrou revelações do inquérito da PF

Capítulo 1

Inquérito achou uma rede de negócios lucrativos por trás dos atos antidemocráticos, alimentada por servidores que atuam ao lado de Jair Bolsonaro.

 

Capítulo 2

Depoimentos no inquérito sugerem que os proprietários de canais do Youtube atuavam como "laranjas" e repassavam recursos de monetização a terceiros.

 

Capítulo 3

O vereador Carlos Bolsonaro é citado 43 vezes no inquérito. A PF investiga se o vereador teria ajudado os suspeitos a atacar as instituições.

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Donos de canais podem responder por crime contra segurança nacional

 Patrik Camporez

Breno Pires

Rafael Moraes Moura

07/12/2020

 

 

Proprietários de canais no Youtube que incentivaram manifestações contra a democracia, deputados e empresários bolsonaristas poderão ser denunciados por crimes previstos na Lei de Segurança Nacional (LSN), caso seja comprovada sua participação nos atos contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. É crime previsto na lei fazer propaganda de "processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social" ou incitar "à subversão da ordem política ou social" e "à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições".

O inquérito que apura quem estava por trás da organização e financiamento desses atos foi aberto no dia 21 de abril por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, a pedido da Procuradoria-geral da República (PGR). As manifestações ocorreram no primeiro semestre, em todo o País, e reuniram milhares de pessoas, muitas delas munidas de faixas com inscrições em defesa da intervenção militar.

A decisão de Moraes foi tomada dois dias depois de o presidente Jair Bolsonaro participar de protesto em Brasília, em 19 de abril, marcado por palavras de ordem contra o Congresso e com faixas a favor de uma intervenção militar. Ao dar sinal verde à abertura do inquérito, hoje com 1.152 páginas, Moraes concluiu que o episódio era "gravíssimo", pois atentava contra o Estado Democrático de Direito brasileiro e suas instituições republicanas.

Bolsonaro elevou o tom do confronto com o Congresso e o Supremo, naquele dia, ao participar de um ato na frente do quartel-general do Exército. Na ocasião era comemorado o Dia do Exército. Com microfone em punho, Bolsonaro subiu na caçamba de uma caminhonete e pregou o fim da "patifaria". Fez um discurso inflamado para seguidores que exibiam faixas com inscrições favoráveis a um novo AI-5, o mais duro ato da ditadura (1964 a 1985), e gritavam palavras de ordem contra o STF e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

"Nós não queremos negociar nada. Queremos é ação pelo Brasil", disse Bolsonaro, aplaudido por centenas de manifestantes. "Chega da velha política! (...) Acabou a época da patifaria. Agora é o povo no poder. Vocês têm a obrigação de lutar pelo País de vocês".

Meses depois, porém, o presidente fechou na Câmara um acordo com o Centrão – grupo de partidos conhecido por suas práticas fisiológicas –, aliandose ao bloco que sempre definiu como "velha política". O deputado Arthur Lira (PP-AL), chefe do Centrão, é aliado de Bolsonaro e tem o apoio dele para disputar a presidência da Câmara, em fevereiro de 2021.

Impeachment. Nos bastidores do Congresso, a leitura política é a de que Bolsonaro agiu assim porque, com o apoio do Centrão, conseguiria barrar o avanço de pedidos de impeachment contra ele na Câmara. Além disso, ao levar o Centrão para a base de sustentação do governo no Congresso, o presidente também tenta impedir que o Legislativo aprove possíveis investigações envolvendo seus filhos.

A maior parte das diligências sobre as manifestações contra a democracia já foi concluída. Mesmo assim, não há previsão de quando o relatório desse inquérito será finalizado pela Polícia Federal.

Quando pediu a abertura da sindicância, o procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que os protestos foram feitos "por vários cidadãos, inclusive deputados federais", mas não mencionou a participação de Bolsonaro em nenhum ato. O envolvimento de parlamentares foi usado por Aras como justificativa para explicar o fato de a investigação ser mantida no STF. As apurações correm sob sigilo.