Título: Remédios não tratam maus hábitos
Autor: Clarisse Meireles
Fonte: Jornal do Brasil, 26/02/2005, Vida, p. 1

Como um microcosmo do mundo, o Brasil abriga os dois extremos da questão do consumo de medicamentos: milhares de brasileiros ainda morrem sem acesso a remédios básicos, enquanto camadas privilegiadas fazem uso abusivo. Doutora em saúde coletiva e professora da Fundação Oswaldo Cruz, Marilene Cabral do Nascimento estudou este fenômeno no livro Medicamentos - ameaça ou apoio à saúde? (ed. Vieira & Lent). Por que estamos tomando tantos remédios?

Não podemos esquecer o impacto positivo dos antibióticos na expectativa de vida, mas o que vemos hoje é uma supervalorização do medicamento em detrimento de todos os outros recursos disponíveis. A medicina ocidental tende a solucionar os males do mundo com medicamentos. E também se usa o remédio para tentar compensar maus hábitos. Assim, quem fuma muito toma vitamina, quem come demais toma laxante, quem bebe demais usa sal de frutas. Na maior parte das vezes, são necessárias mudanças pessoais e sociais.

Muitos médicos se tornaram apenas expedidores de receitas?

Sim. Os pacientes resistem a sair de uma consulta sem uma receita médica. E a formação deste profissional é muito voltada para a medicação. Além disso, as consultas são cada vez mais rápidas. Para piorar, no sistema público de saúde, muitas vezes a cada consulta o paciente vê um médico diferente. O diagnóstico não é tão preciso. Na dúvida, receita-se um medicamento forte. Às vezes, só repouso ou alimentação diferenciada resolveria.

Além disso, as propagandas e a própria mídia estimulam a automedicação...

No Brasil, há boas leis que controlam a propaganda de medicamentos, nem sempre respeitadas. Um dos problemas é que os riscos dos remédios não são divulgados. O que se vê é um aumento da incidência das reações adversas. Um estudo americano mostra que elas chegam, em alguns estados, a ser a quarta causa de morte. (Os EUA são a sociedade mais medicalizada do mundo. Sozinhos, os americanos consomem mais da metade do total de remédios vendidos). Trata-se de uma epidemia sem visibilidade social, que no Brasil ainda é subnotificada.

Os médicos não conhecem os riscos?

Muitos são malformados em farmacologia. Um estudo recente mostrou a desinformação dos médicos brasileiros em relação aos efeitos e riscos dos 50 medicamentos mais vendidos.

O rigor das farmácias também deixa a desejar...

Sem receita, você pode não conseguir comprar um remédio de venda controlada na primeira ou na segunda farmácia, mas, se insistir, compra. A indústria farmacêutica é uma das maiores potências da economia hoje e exerce lobby junto a médicos e farmacêuticos. Muitos oferecem remuneração por venda, criando a empurrotarapia, quando se tenta convencer o cliente a comprar um medicamento que não é necessariamente o melhor nem o mais barato. Aqui, a farmácia é um negócio como qualquer outro e só 4% são de propriedade de farmacêuticos.