Título: Um mundo dopado
Autor: Clarisse Meireles
Fonte: Jornal do Brasil, 26/02/2005, Vida, p. 1

Em um país conhecido por seu povo alegre, cordial e festivo, é no mínimo surpreendente constatar a quantidade de fórmulas antidepressivas que o Brasil está tomando. Elas já são a quarta classe de medicamentos mais consumida no país, atrás de analgésicos, antibióticos e contraceptivos. De acordo com dados do mercado farmacêutico, entre 2001 e 2004, o consumo de antidepressivos no país passou de 356 milhões para 400,3 milhões de comprimidos.

Quando o Prozac aportou por aqui, no início da década de 90, os antidepressivos não tinham venda expressiva. Hoje, este e outros medicamentos à base de fluoxetina e substâncias que agem sobre o neurotransmissor serotonina (associado à sensação de prazer) são utilizados para tratar diversos transtornos de comportamento: da depressão propriamente dita até casos de déficit de atenção e hiperatividade.

A busca da felicidade em pílulas não é característica exclusiva do povo brasileiro. Entre os americanos adultos, 10% das mulheres e 4% dos homens tomam antidepressivos. Mas o campeão de consumo per capita de psicotrópicos (aí se incluem antidepressivos, ansiolíticos e soníferos) é... surpresa! A França, a meca do pensamento racional.

Para Madel Luz, professora do Instituto de Medicina Social da Uerj, o processo de medicalização social tenta tratar uma inversão de valores mal digerida pelo mundo contemporâneo. No lugar de compartilhamento, solidariedade e troca (num sentido diferente daquele do mercado), categorias da economia como consumismo, produtividade e desempenho invadem as relações humanas. ''Em uma sociedade que produz sofrimento e isolamento, a medicina propõe sua solução rápida: o medicamento.''

Assim, o indivíduo delega as funções físicas e psíquicas à farmacologia, e até a perda do namorado é resolvida na farmácia. ''No fundo, assim como as ilegais, as drogas legais tomam o lugar deixado pela perda de sentido das relações sociais. Será que a solução é se dopar?'', indaga Madel.