Título: Epidemia silenciosa
Autor: Clarisse Meireles
Fonte: Jornal do Brasil, 26/02/2005, Vida, p. 1

Em todo o mundo, nunca se tomou tanto medicamento desnecessário e em doses tão exageradas Quando se fala no perigo das drogas, a associação automática é com substâncias alucinógenas ou excitantes consideradas ilegais na maior parte dos países ¿ restrição que, diga-se de passagem, nunca impediu seu consumo em larga escala. Nos últimos anos, no entanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem voltado uma atenção cada vez maior para o consumo exagerado de outras drogas: aquelas adquiridas na farmácia mais perto de casa. De acordo com dados da OMS, o mundo está intoxicado, tomando remédios demais e de forma errada. Segundo avaliação da organização, metade das prescrições e vendas de medicamentos em todo o mundo são indevidas. No caso dos antibióticos, a questão é ainda mais grave: cerca de 75% das prescrições seriam dispensáveis, o que, junto com a automedicação, tem colaborado para o desenvolvimento de bactérias mais resistentes. ¿As drogarias são os novos templos da modernidade¿, aponta Madel Luz, professora do Instituto de Medicina Social da Uerj e autora do livro Novos saberes e práticas em saúde coletiva (ed. Hucitec).

O uso racional de medicamentos é um dos pontos cruciais da política de remédios do órgão para o quatriênio 2004-2007. No Brasil, da mesma forma, nunca se consumiu tanto medicamento. Estudo realizado pela Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) indicou que a venda de remédios em 2003 avançou 21,44% em relação a 2002. O faturamento do setor saltou de R$ 18,89 bilhões em 2003 para R$ 22,16 bilhões em 2004.

O aumento do consumo, no entanto, tem mais benefícios para a saúde financeiro dos laboratórios farmacêuticos do que para a saúde da população. Segundo avaliação técnica encomendada pela revista francesa Prescrire, de 2.090 fórmulas lançadas nos últimos 20 anos, apenas sete representam um avanço terapêutico relevante. O dado encontra eco no FDA (órgão americano que regula alimentos e medicamentos). Em relatório, a instituição aponta que 80% de todos os novos medicamentos surgidos no mercado representam nenhum ou pouquíssimo progresso.

Então, por que o consumo cresce tanto? Como lembra a farmacêutica Sônia Altenburg, professora de farmacologia do curso de medicina da UFF, a medicalização do Brasil teve início a partir dos anos 70 quando, sob pressão dos grandes laboratórios farmacêuticos, foi derrubada a obrigatoriedade de que as farmácias fossem de propriedade de farmacêuticos, possibilitando a expansão de redes. ¿Criaram também, em todo o mundo, práticas aberrantes como as comissões por vendas do remédio da moda, além de relações promíscuas com médicos¿, enumera. ¿Precisamos domesticar a indústria¿, defende Sônia.

Para se ter uma idéia, os 15 maiores grupos farmacêuticos do mundo gastam por ano cerca de US$ 80 bilhões em marketing, três vezes mais do que o orçamento em pesquisa e desenvolvimento de novas substâncias. Se as novas fórmulas não são sempre melhores, e muitas vezes não passam de adaptações, por que acabam substituindo as antigas? Questão de sobrevivência de uma das maiores forças da economia, que se encontra em estado de alerta. Até 2008, mais de 30 dos 57 medicamentos mais vendidos no mundo perderão a patente de exclusividade, que dura de 10 a 20 anos. Ou seja, terão suas versões genéricas e similares, mais baratas. Daí a necessidade de desenvolver ¿novos¿ remédios. A quebra de patentes só é possível em casos extremos de garantia de vida, como o Brasil fez com os antiretrovirais para o tratamento de Aids.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também está preocupada com a supermedicação e a automedicação. Em alguns hospitais dos país, 15% das internações decorrem de reações adversas a remédios. ¿Todo e qualquer medicamento pode causar danos, inclusive aqueles ditos naturais¿, lembra Murilo Freitas Dias, chefe da unidade de farmacovigilância da Anvisa.

Desde 1999, quando foi criado, o órgão recebeu 5.330 notificações de reações adversas e desvios de qualidade, número considerado pequeno, já que a média mundial mostra que a cada dez pessoas que tomam um medicamento, uma sofrerá efeitos colaterais. As mais comuns são as alergias dermatológicas causadas por antibióticos.

Para aumentar a confiabilidade dos dados e aferir de forma mais eficaz a segurança da medicação, desde segunda-feira desta semana, 43 farmácias do estado de São Paulo, deram início ao projeto Farmácias Notificadoras, que vai receber informações sobre reações adversas e desvios de qualidade dos medicamentos. Trata-se de uma parceria da secretaria de saúde do Estado com a Anvisa e o Conselho Regional de Farmácia, para verificar os males que o uso correto de medicamentos ¿ como prescrito ¿ pode causar.

Outro problema combatido pela Anvisa é o consumo off-label, isto é, diferente daquele para o qual o remédio foi desenvolvido. Recentemente, por exemplo, cinco mulheres morreram por usarem a substância flutamida para tratar acne ¿ quando o produto é indicado no tratamento de câncer de próstata.

Ainda no primeiro semestre, o consumidor vai começar a notar diferença na bula. Em vez de termos técnicos, que são compreendidos apenas por médicos e farmacêuticos, será adotada uma linguagem acessível aos pacientes. O tamanho das letras também vai aumentar.

Paralelamente, a OMS, através da Fiocruz, está treinando médicos brasileiros no sentido de evitar prescrições desnecessárias. O curso de medicina da UFF foi um dos primeiros a incluir no currículo a preocupação com a racionalização da prescrição médica. Esta deve obedecer critérios que podem parecer óbvios mas nem sempre são levados em conta: um remédio deve ser receitado em função da segurança e do conforto, com menor custo e na dose certa.

Outra preocupação crescente, dentro desta perspectiva, é recomendar medidas não medicamentosas, como grupos de apoio e mudanças do estilo de vida, que acabam tendo um impacto nas dosagens dos remédios, que podem ser, muitas vezes, diminuídas. ¿Infelizmente¿, diz Madel Luz, ¿a biomedicina transforma a vida em doença. É preciso se voltar para a promoção da saúde, não para o controle da doença.¿