O Estado de São Paulo, n. 46447, 17/12/2020. Espaço aberto, p.A2

 

Retomada atual em V não resolve fraqueza do PIB

Roberto Macedo

17/12/2020

 

 

O relatório do IBGE sobre as Contas Nacionais Trimestrais relativas ao terceiro trimestre de 2020, divulgado no último dia 3, chegou com destaque às manchetes por sua melhor notícia, a de que o produto interno bruto (PIB) cresceu 7,7% sobre o trimestre imediatamente anterior. Mas cabe colocar essa taxa num contexto mais amplo. Para tanto vale lembrar que o PIB teve taxas negativas no primeiro e no segundo trimestres de 2020, -1,5% e -9,6% (!) respectivamente, ligadas ao impacto da covid-19. Olhando essas três taxas, percebe-se que aquela positiva de 7,7% foi insuficiente para tirar a economia do novo buraco em que se meteu com as outras duas, que totalizaram queda de 11%.

Buraco novo porque aconteceu em outro muito mais duradouro no qual o PIB ainda se encontra. É mostrado pelo relatório, embora seu texto não analise essa questão. Um dos seus gráficos apresenta um índice do PIB trimestral entre o primeiro trimestre de 1996 e o terceiro de 2020, e percebe-se que o valor mais alto foi lá atrás, no primeiro trimestre de 2014! Aí começa um movimento lembrando um U bem rebaixado e estendido, mas cuja haste direita não retornou ao mesmo nível marcado pela esquerda em sua ponta. Isso define uma depressão, mais longa e forte do que as duas recessões ocorridas durante o mesmo movimento, a de 2015-2016 e a da covid-19. Venho insistindo em apontar essa depressão ainda em curso, mas o noticiário, a classe política e mesmo vários economistas parecem ignorá-la, ou negligenciar a busca do seu enfrentamento.

Sintoma disso é que no momento se fala muito e com entusiasmo de uma retomada em V, mas é um V incompleto, pois sua haste direita ainda não voltou à altura da haste esquerda. E mesmo se voltasse, o problema maior, o dessa depressão, continuaria a existir. Supondo que o PIB caia 4,4% neste ano – a previsão do último boletim semanal Focus, do Banco Central –, estimei que ele precisaria crescer perto de 7,2% a partir de 2021 para voltar ao seu valor de 2014, o que tomaria cerca de três anos crescendo perto de 2,5% ao ano, e com muitas incertezas pelo caminho. Assim, para ao final voltar ao PIB de 2014, tomaria nove anos!

Passo a uma visão setorial dessa depressão, abrangendo três setores, com sua participação no PIB, no primeiro trimestre de 2018, entre parênteses: serviços privados, sem comércio (36,5%), indústria (17%) e comércio (10,6%). No seu último relatório sobre esse setor de serviços, relativo a outubro de 2020, o IBGE publicou gráfico, que começa em janeiro de 2011, onde mostra que o mesmo setor teve seu último pico em novembro de 2014, e no mês do relatório estava 16,6% (!) abaixo desse pico. Já o setor industrial teve seu pico em maio de 2011 e no mês do relatório estava 14,9% (!) abaixo desse seu maior valor na série. E o comércio teve o seu pico em outubro de 2020, o que mostra o ímpeto desse setor na retomada, é o menor dos três citados. Proporcionalmente ele adiciona menor valor ao que recebe de seus fornecedores do que os outros dois.

Como se percebe, o quadro setorial mostra, nos dois setores mais importantes, que somam 53,5% do PIB conforme as porcentagens acima, um quadro que reflete a depressão já descrita acima.

Voltando ao relatório do PIB trimestral, outro gráfico mostra as taxas trimestrais de investimento e de poupança no período entre o terceiro trimestre de 2000 e o terceiro deste ano, ambas como proporção do PIB. A taxa de investimento esteve um pouco acima de 20% entre o terceiro trimestre de 2009 e o de 2013, mas depois caiu e nos últimos três anos, sempre no terceiro trimestre, esteve perto de 16% ao ano, claramente insuficiente para uma taxa satisfatória de crescimento do PIB, pois o ideal seria que fosse mais próxima de 25%. Os investimentos em formação bruta de capital fixo – como em fábricas, fazendas, hospitais, escolas e outras atividades – são o motor da economia ao gerarem emprego e renda, mas no horizonte que vejo à frente não enxergo uma expansão mais forte desses investimentos.

A taxa de poupança, que por quatro anos ficou perto de 14% do PIB, saltou para 17% do PIB no terceiro trimestre de 2020, por causa da poupança gerada pelo benefício assistencial e, nas famílias de maior poder aquisitivo, em razão da contenção do consumo, motivada pelo isolamento em suas residências diante da pandemia. Um fato pouco sabido é que a poupança de empresas e famílias alcança cerca de 20% do PIB, mas parte dessa poupança financia o governo, que deixa de investila, praticando, assim, uma "despoupança".

Enfim, este é um quadro trágico do mau estado da economia brasileira. Quanto a políticas públicas em sentido contrário, no meu último artigo aqui preguei o fim do recesso parlamentar que começa na próxima semana, e que o Congresso se reunisse em sessão permanente até que produzisse medidas que estimulassem os investimentos. Nada disso se concretizou e, assim, o navio da economia segue desgovernado no meio de forte tempestade.

ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), PROFESSOR SÊNIOR DA USP, É CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR