Título: A política externa brasileira na América do Sul
Autor: Maria Regina Soares de Lima
Fonte: Jornal do Brasil, 13/02/2005, Internacional, p. A14

O Brasil faz fronteira com praticamente todos os países sul-americanos, excetuando-se apenas o Equador e o Chile. Em 2004, o PIB brasileiro representou mais da metade do PIB da América do Sul e suas exportações alcançaram mais de 40% do total das vendas externas da área. A combinação de uma proximidade geográfica inescapável com a assimetria no tamanho econômico do país gerou uma síndrome de desconfiança entre o Brasil e os países da região, alimentada pelas diferenças de língua, trajetórias sociopolíticas e substrato cultural. Mas há um legado histórico que ajuda a amenizar esse sentimento de estranhamento e que, com o retorno à ordem democrática nos anos 80, construiu uma ponte para o início de relações estreitas com a Argentina. Essa herança tem a ver com o fato de que a percepção de risco na visão das nossas elites é derivada antes de vulnerabilidades de natureza econômica do que de segurança.

Grande parte da legitimidade do Mercosul, um projeto estratégico do Estado brasileiro, se deve ao seu componente econômico, o que, paradoxalmente, gerou um limite na tolerância das elites nacionais com relação aos seus resultados econômicos imediatos. Pode-se argumentar que se a vertente desenvolvimentista legitimou a política externa brasileira, também cristalizou na sociedade a concepção de que a principal métrica de avaliação da política externa reside em resultados econômicos no curto prazo.

É inevitável que a ênfase conferida às relações com a América do Sul no governo Lula fosse avaliada por sua utilidade econômica e pouca consideração reservada à dimensão política desse movimento de afirmação da identidade sul-americana do Brasil.

Com o boom dos preços das commodities, porém, o argumento do escasso benefício do relacionamento com países de menor grau de desenvolvimento relativo perde credibilidade. Em um contexto de crescimento acentuado das exportações latino-americanas em geral, foi a diversificação setorial da pauta brasileira um dos fatores responsáveis pela contribuição dos mercados sul-americanos para a expansão, em mais de 50%, do saldo comercial do Brasil, em 2004.

Da mesma forma, é o diferencial das estruturas econômicas entre o Brasil e os países da região o principal responsável pelo volume das exportações de serviços e a presença regional de grandes empresas brasileiras, nos setores de energia e de engenharia, por exemplo. Todo esse dinamismo parece passar despercebido das críticas convencionais que apenas conseguem enxergar nesses movimentos temidos vestígios terceiro-mundistas.

Mas é no plano político que o componente sul-americano da política externa adquire maior relevância, exatamente pelos elementos inéditos que encerra. De um lado, trata-se de construir capacidade coletiva de influência nas negociações internacionais, bem como na elaboração das normas globais e regionais de modo a torná-las mais permeáveis aos interesses dos países do Sul.

O movimento revela, a um só tempo, uma visão do sistema internacional com tintas multipolares ou, pelo menos, com potencial para brechas de uma estrutura que se reconhece ainda unipolar e a importância conferida ao arcabouço multilateral das normas e dos regimes internacionais.

De outro lado, trata-se de cooperar na solução de crises políticas nos vizinhos que possam eventualmente estimular ações unilaterais dos Estados Unidos. No primeiro caso, o principal instrumento que o Brasil pode oferecer é a coordenação da ação coletiva dos países sul-americanos nas arenas multilaterais globais e regionais; no segundo, disponibilizar seus bons ofícios na mediação de eventuais situações de conflito dentro de e entre os países sul-americanos, como sucedeu na formação do Grupo ¿Amigos da Venezuela¿, no início do governo Lula, e no conflito recente nos Andes, entre aquele país e a Colômbia.

Dois riscos, que costumam acometer relacionamentos com grau acentuado de assimetria, devem ser evitados nessa virada inédita da política externa: veleidades do exercício de hegemonia regional e de práticas intervencionistas. Os antídotos para eventuais temores de um ¿expansionismo brasileiro¿ são a construção de instituições regionais fortes com soberanias compartilhadas e o fortalecimento das instituições democráticas na América do Sul, condições para que se possa constituir uma verdadeira comunidade de nações.

O principal desafio desse esforço de aprofundamento da inserção regional é a internalização da política externa na sociedade. Em última análise, eventuais custos materiais da liderança brasileira serão arcados pela sociedade. Os desafios de uma política assertiva na ordem unipolar contemporânea são consideráveis. Alianças internacionais sólidas e diversificadas, por um lado, e legitimidade democrática e apoio político interno, por outro, são dois pilares essências para o sucesso de políticas externas não convencionais de países de porte médio, como o Brasil.