Título: Rotina de luta e promessas de paz
Autor: Ben Lievens
Fonte: Jornal do Brasil, 13/02/2005, Internacional, p. A15
Nas fileiras do PKK, homens e mulheres vivem com disciplina rígida mas sonham com vida pacífica
Ben Lievens Guerrilheiro que estudou com Osama Bin Laden numa escola no Paquistão chora por não ter podido evitar que o amigo virasse terrorista
MONTANHAS ZAGROS, Curdistão - A ida de Maxmur para a área do PKK durou mais um dia até o primeiro posto do Kongra Gel, o braço armado do PKK. Já era noite, quando os guerrilheiros nos pararam. Eram dez mulheres e nove homens. Elas são muitas em todas as bases e desempenham as mesmas tarefas dos homens. Descobri entre eles um curdo alemão. Sem dar o nome, como os companheiros, contou que vivia na Alemanha até ter contato com um dos partisans do PKK. Um ano se passou e estava em Zagros. Era o cozinheiro.
Quando amanheceu, o barulho das mulas e dos cavalos usados pelas patrulhas me acordou. A paisagem das montanhas, estonteante, contrastava com o modo de vida rude e sem conforto dessas pessoas. Sofrem bastante, mas a natureza é generosa e lhes dá muito. Tudo isso é reconhecido e transmitido a cada militante do grupo.
- Uma das nossas regras principais é a de respeitar a natureza e viver de forma ecológica. Aprendemos que é a única coisa que temos na vida. A Terra é a mãe de todos - explica o cozinheiro. Para quem imaginava rebeldes ocupados na guerra contra a Turquia, tal sensibilidade é surpreendente. O Kongra-Gel diz lutar por seus direitos legítimos.
Seguimos a pé por mais um dia até uma segunda base, um pequeno cômodo com um fogão a lenha no meio. Em volta, homens armados e tapetes. A mesma rotina se repetiu várias vezes por mais três dias, ao longo de trilhas tortuosas. Em cada ponto, a quantidade de perguntas sobre nossas idéias, o interesse pelo Brasil e sobre a razão do encontro e o que queríamos conversar com o líder aumentava.
No último desses destacamentos, tive a impressão de estar com monges, em vez de guerrilheiros. Era o lugar habitado mais alto que já vira na vida, um campo de instrução cercado por picos, no meio do nada. Ou perto de Deus, como me disseram. Caminhamos mais duas horas até encontrar um guerrilheiro que contou ter convivido por 10 anos em um movimento islâmico no Paquistão, com o saudita Osama Bin Laden, antes que este virasse o maior terrorista do mundo. Ao começar a discorrer sobre a guerra entre Osama e George Bush (presidente dos Estados Unidos), começou a chorar. Dizia-se fracassado por não conseguir impedir a transformação do colega.
- Bush e Bin Laden são as crianças loucas de Deus - disse, mudando o assunto para astronomia e astrologia. Em seguida, num flamengo perfeito, deu ordens a um guerrilheiro holandês, que me cumprimentou, dizendo que nunca um estrangeiro havia chegado até aquele ponto. A mulher e a filha ficaram na Holanda. Conversei ainda com um australiano, vendo nas cabanas cartazes com fotos de Che Guevara e ouvindo horas de orientação ideológica de esquerda. Retribuí mostrando o samba.
Falei com algumas mulheres, cujos maridos haviam sido mortos em combate. Elas contaram que a vida social não existe nas bases do PKK nas montanhas. A aproximação entre os sexos pode trazer problemas para o grupo, explicaram, acrescentando que dividem tudo entre todos. Instruídas, sabiam muito dos problemas brasileiros (não há internet nesses campos ), inclusive das guerras do tráfico, da criminalidade e dos desafios de um país grande com dificuldades econômicas. Uma guerrilheira ouvia música turca. Disse que achava estranho, mas ela respondeu que lutava contra o governo de Ancara, não contra os turcos.
O líder Murat Karayilan nos recebeu amistosamente. Um dos mais procurados do mundo, não se preocupou em nos revistar.
- Vivo em constante perigo. Mas sentimos que vocês não traziam risco - disse, feliz por ter um interlocutor do Brasil.
O chefe do PKK sabia tudo sobre o país, especialmente da política. Tinha conhecimento de que o governo estava nas mãos de um partido de esquerda e de que o presidente Lula foi operário. Seguia suas idéias, sobretudo no campo social. Perguntei-lhe a respeito da continuidade da luta, já que a causa separatista e a criação de um Estado único parecem uma idéia abandonada.
- Não amamos usar armas. Nossa luta é pelos direitos humanos e pelos direitos do povo curdo - afirma.
Questionado sobre os ganhos com uma guerra tão longa e hoje sem futuro, Murat responde:
- Desde 1993, tentamos convencer o governo turco a fazer a paz. Muitas vezes enviamos missões desarmadas para mostrar nossas intenções. São gestos simbólicos que ajudariam a iniciar uma conversação e deixariam claro que estamos prontos a baixar as armas.
O resultado, afirma, vem sendo uma recusa sistemática por parte dos governos da Turquia.
- Eles dizem que não negociam com terroristas - conclui, voltando de novo o interesse para o Brasil. Particularmente, o que Karayilan quer é receber uma cópia de um projeto de políticas públicas, que, segundo ele, Lula e o PT implantaram em Porto Seguro, na Bahia. O objetivo, acrescenta, é levar essa experiência aos acampamentos do Curdistão. (Ben Lieven)