O Estado de São Paulo, n. 46452, 22/12/2020. Política, p A4.

 

PGR pede veto a decisão que libera eleito ficha suja

Rafael Moraes Moura

Breno Pires

22/12/2020

 

 

Recurso. Integrantes do STF e do TSE criticaram entendimento de Nunes Marques, que suspendeu trecho da Lei da Ficha Limpa e reduziu período de inelegibilidade de condenados

A Procuradoria-geral da República (PGR) entrou com recurso no Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar a decisão do ministro Nunes Marques que suspendeu trecho da Lei da Ficha Limpa e reduziu o período de inelegibilidade de políticos condenados criminalmente. Na prática, a decisão do magistrado liberou o caminho de candidatos que concorreram nas eleições municipais de 2020, mas tiveram o registro barrado pela Justiça Eleitoral devido à legislação.

O recurso já foi encaminhado para análise do presidente do STF, Luiz Fux, que pode derrubar a decisão de Nunes Marques durante o recesso do Judiciário, iniciado anteontem. O tribunal só retoma regularmente as atividades em fevereiro.

Na decisão de apenas quatro páginas tomada no último sábado, às vésperas do recesso do Supremo, Nunes Marques considerou inconstitucional um trecho da legislação que fazia com que pessoas condenadas por certos crimes – como lavagem de dinheiro, organização criminosa, tráfico de drogas e contra a administração pública – ficassem inelegíveis por mais oito anos, após o cumprimento das penas.

O entendimento do magistrado foi duramente criticado por integrantes do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ministros ouvidos pelo Estadão avaliam que a decisão “relativiza” a Lei da Ficha Limpa e modifica as regras da eleição de 2020 logo após a realização do pleito. Um dos principais pontos levantados no STF é que a liminar avançou sobre um tema que já havia sido debatido pelo plenário do Supremo em 2012, durante julgamento sobre a Lei da Ficha Limpa.

“A mim causou muita perplexidade, porque o Supremo já tinha depurado a Lei da Ficha Limpa. Não podemos viver aos solavancos”, disse o ministro Marco Aurélio Mello. “O ideal seria o presidente convocar uma sessão extraordinária por videoconferência, que é viável, e acabarmos com essa celeuma e ter-se segurança jurídica. A decisão só pode ser retirada do mundo jurídico pelo colegiado”, afirmou.

A decisão de Nunes Marques, escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro para uma vaga no Supremo, foi tomada em uma ação movida pelo PDT. O partido contesta um trecho da Lei da Ficha Limpa, que antecipou o momento em que políticos devem ficar inelegíveis. Antes da lei, essa punição só começava a valer após o esgotamento de todos os recursos contra a sentença por certos crimes (contra a administração pública, o patrimônio público, o meio ambiente ou a saúde pública, bem como pelos crimes de lavagem de dinheiro e aqueles praticados por organização criminosa).

Com a lei, a punição começou imediatamente após a condenação em segunda instância (ratificada por um colegiado) e atravessa todo o período que vai da condenação até oito anos depois do cumprimento da pena. O partido apontou que é desproporcional deixar inelegível um político por tanto tempo e alegou ao STF que a punição deveria ser de apenas oito anos a partir do momento que começa a valer a pena, e não durante esse período mais oito anos “após o cumprimento da pena”.

A liminar do ministro vale especificamente para os políticos que ainda estão com o processo de registro de candidatura de 2020 pendentes de julgamento no TSE e no Supremo. É o caso, por exemplo, do prefeito eleito de Bom Jesus de Goiás, Adair Henriques (DEM), que teve o registro barrado pelo TSE.

Condenado por delito contra o patrimônio público em segunda instância em setembro de 2009, ele teve o registro eleitoral para 2020 autorizado pelo Tribunal Regional Eleitoral, mas perdeu no TSE.

Após a liminar de Nunes Marques, a defesa de Adair Henriques pediu ao TSE para garantir a diplomação do candidato. O líder comunitário Júlio Fessô (Rede), que disputou uma vaga de vereador de Belo Horizonte nas últimas eleições, também acionou o TSE. O TRE mineiro considerou inelegível o candidato, que foi condenado à prisão em 2006 por tráfico de drogas e cumpriu a pena em 2011. Agora, com base na decisão do Supremo, Júlio Fessô busca o aval da Justiça Eleitoral para assumir o mandato.

Procurado pela reportagem, o TSE informou que não possui estimativa de número de candidatos que serão beneficiados com a decisão. “O TSE não vai se manifestar sobre o assunto porque o tema ainda está pendente de decisão definitiva do STF”, comunicou o tribunal. Advogados eleitorais que acompanham as discussões estimam que cerca de 100 políticos de todo o País podem ser beneficiados com a liminar. Nunes Marques não se manifestou.

Obstáculos. Ao recorrer da decisão que liberou o caminho de candidatos fichas sujas, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, apontou uma série de obstáculos jurídicos que justificam a derrubada da liminar, entre eles a regra de que mudanças nas regras eleitorais só valem um ano depois. Para Jacques, a decisão levou à quebra da isonomia no mesmo processo eleitoral, já que o afastamento da Lei da Ficha Limpa vale apenas para os candidatos com registro ainda pendentes de análise no TSE e no STF. “A decisão criou, no último dia do calendário forense, dois regimes jurídicos distintos numa mesma eleição.”/ COLABOROU PAULO ROBERTO NETTO

PARA LEMBRAR

Lei passou a valer em 2012

Criada a partir da iniciativa popular, a Lei da Ficha Limpa foi entregue ao Congresso em setembro de 2009 com 1,5 milhão de assinaturas. No ano seguinte, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu, por seis votos a um, que a lei poderia ser aplicada já em 2010. Em março de 2011, a validade da lei a partir da eleição de 2010 foi derrubada no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). A lei então passou a valer apenas a partir da eleição de 2012. Em 2016, o então presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes disse, durante sessão plenária, que a Lei da Ficha Limpa era mal elaborada e que parecia que tinha sido feita "por bêbados".