Título: Decifrar a droga
Autor: Carlos Minc Deputado estadual (PT-RJ)
Fonte: Jornal do Brasil, 09/02/2005, Opinião, p. A9

A cidadania está asfixiada. A esquina, o sinal fechado, o túnel transformaram-se em pesadelos cotidianos; estamos indefesos frente à blitz da extorsão ou à falsa blitz do crime; não há escudo para ricos ou pobres que nos defenda de balas perdidas ou achadas.

A economia da droga, o tráfico de armas que ela sustenta, a corrupção institucionalizada e a guerra que já não escolhe o bairro impede que vislumbremos saídas, quando há 20 candidatos para ocupar o posto de cada traficante morto. O tráfico já não aceita qualquer um. Exige experiência: o candidato deve ser armeiro, especializado em telefonia, militar, engenheiro de túneis, advogado criminalista, enfermeiro.

Campanhas de TV que culpam exclusivamente usuários e dependentes de drogas pelo financiamento do tráfico são de baixa eficácia e ocultam a omissão dos governos. Seria fantástico se um sentimento de culpa superasse a dependência. Os profissionais da área sabem como é longo e penoso este processo, que depende do apoio da família, do AA ou NA, da recuperação da auto-estima e da reinserção social. O estigma alimenta o preconceito e fecha a via da valorização profissional, artística e educacional. Os governos deveriam prevenir, mas falham; deveriam abrir canais para a juventude excluída nos estágios, esportes, ciências e artes, mas não o fazem; deveriam combater a corrupção e a extorsão, mas fracassam; teriam de ''secar'' a economia das drogas, coibir o tráfico de armas e seu braço político, mas obtém pífios resultados, com a auspiciosa exceção das operações da Polícia Federal; o sistema penitenciário deveria recuperar e profissionalizar, mas dele se comanda o tráfico pelo celular e se foge pela guarita; diante deste festival de omissões, jogar toda a culpa exclusivamente no elo final é bastante cômodo. A lei 4074/2003, de nossa autoria, estabelece: ''São direitos dos usuários e dependentes de drogas: I - não sofrer discriminação em campanhas; II - O acesso pleno à saúde; III - Tratamentos que respeitem sua dignidade, permitam a reinserção social e promovam vida livre e responsável. Art. 3º - São deveres do Estado: I - Desenvolver campanhas de prevenção que informem o conjunto da população, que estimulem o diálogo, a solidariedade e a inserção social de usuários e dependentes, não os estigmatizando ou discriminando''.

A sociedade é dependente de drogas farmacêuticas vendidas em liquidações, como os anoréticos, os anti-depressivos e os ansiolíticos. Os governos dependem dos impostos do álcool e do cigarro para fechar a conta. O alcoolismo vitimiza 20 vinte mais do que todas as drogas ilegais somadas. A agricultura depende de agrotóxicos cancerígenos, para os quais a Embrapa dispõe de alternativas biológicas. Cada sociedade define as drogas sociais, rituais e produtivas que tolera e às que ilegaliza. Proibimos, por leis, drogas pesadas que intoxicam trabalhadores nas fábricas, como o mercúrio, o chumbo e o amianto, para as quais há alternativas seguras. A legislação jurássica que equipara usuários e dependentes a criminosos dificulta a desintoxicação e a reintegração e facilita a extorsão diária. A posição do governo Lula é pela descriminalização de usuários e dependentes, pela ação social e redução de danos. A Câmara dos deputados aprovou o projeto que impede a prisão de usuários, e apesar de limitações, moderniza a legislação. O Senado acompanha a posição e o presidente sancionará a lei. Isto diminuirá a extorsão diária e tornará mais eficaz a prevenção e o tratamento, mas não interromperá o tráfico. Quem compra cachaça no bar pode liquidar sua saúde, mas não financia o tráfico. O monopólio do traficante sobre a venda de drogas ilegais sustenta o poder econômico, militar e corruptor que sujeita milhões de pessoas ao domínio despótico, à lei do silêncio, ao toque de queda. Contabilizando mortes de policiais, bandidos, devedores, por balas perdidas, a guerra das drogas mata 30 vezes mais do que as overdoses, revelando a ineficácia do modelo. Há que investir no planejamento, na qualificação da polícia, na investigação e na integração das políticas públicas. Estas hoje não sobem o morro, deixando isolada a polícia, que cada vez mata e morre mais nesta guerra sem fim. Há que plantar cidadania, investir, integrar, enfrentar o medo e recuperar a liberdade de viver!