Título: Fraseomaníaco compulsivo
Autor: Antonio Sepulveda* Escritor
Fonte: Jornal do Brasil, 09/02/2005, Opinião, p. A9

O ápice do Fórum foi o improviso burlesco do nosso presidente da República

O fórum comunista de Porto Alegre apresentou atrações que variaram entre o chauvinismo mórbido e o antiamericanismo explícito, enquanto fazia pose de simpósio antiglobalizante. Não enganou as pessoas com maior agudeza de espírito. Estas sabem perfeitamente que, se a globalização em pauta fosse apregada pelo extinto ComIntern, ela se tornaria a musa daquele ridículo convescote ideológico, montado pela ressentida militância de um socialismo caduco e desmoralizado pelo instinto policialesco do próprio socialismo.

O fórum vermelho esteve infestado com as costumeiras - e, muitas vezes, conflitantes - atrocidades da revolução permanente do trotskismo, da unificação centralizadora do stalinismo, da insurgência campesina do maoísmo e, sobretudo, das heresias gramscistas. Ali se pregou, abertamente, o critério segundo o qual ''Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht são maiores do que os maiores santos de Cristo'' - e estas são palavras textuais de nosso mal-intencionado xará, o italiano Antonio Gramsci.

Mas ai de quem ousasse brandir uma lata de coca-cola. Seria execrado e expulso do recinto por exibir um símbolo do imperialismo ianque. Isso mesmo, o autodenominado ''Fórum da Liberdade'' proibia um inofensivo refrigerante, porque aquela latinha paradoxalmente escarlate representa a vitória incontestável e definitiva da economia de mercado sobre o dirigismo estatal. A mesma censura não ocorreu, naturalmente, contra celulares, microcomputadores, Internet e outras delícias tecnológicas engendradas pelos Estados Unidos. Eis a trágica e cosmológica ironia: os participantes do fórum que vociferaram contra ao pressão das multinacionais chegaram a Porto Alegre em aviões de multinacionais. Afinal de contas, ninguém sendo de ferro, o que seria dos intelectualmente oprimidos socialistas se não fossem as maravilhosas engenhocas de capitalistas geniais que sempre foram livres para criar e interagir?

O anticlímax, aos olhos de patriotas autênticos, teria sido a inoportuna intervenção de Hugo Chávez, apoiado pelo impune bandoleiro Pedro Stédile. O presidente venezuelano deixou seu país arrasado e teve a petulância de vir pregar guerra aberta ao latifúndio no Brasil. Por outro lado, o ápice do evento foi o improviso burlesco do nosso presidente da República, um fraseômano vocacional que, incitado pelos ideólogos do partido, apoiou entusiasticamente aquele Woodstock das esquerdas delirantes. Lula da Silva alçou a fronte, limpou o pigarro, fez pose de tribuno e pontificou para a plebe ignara que o vaiava e chamava de traidor: ''A democracia é um gesto democrático feito pela boca daqueles que não têm paciência de ouvir a verdade''.

A princípio, estupefatos, imaginamos que fosse pilhéria ou, quem sabe, o presidente houvesse esbarrado em um tropo inédito, um genuíno achado literário. Contudo, foram em vão todas as ingentes tentativas de decifrar aquele arremedo de um quase-poliptoto. É claro que a explicação poderia estar em nossas próprias limitações diante do insuspeito gênio semântico do bem-sucedido torneiro mecânico. Verificamos, porém, que a perplexidade foi igual nos demais cronistas, colunistas e articulistas que escreveram sobre a frase desconcertante. Estávamos, realmente, diante de mais uma das inúmeras parvalhices de um fraseomaníaco compulsivo aparentemente imune às piores situações de constrangimento.

Alguém precisa explicar ao nosso pouco ilustrado mandatário supremo que as suas palavras foram de uma infelicidade extrema. Chamar ''democracia'' de ''gesto democrático'' é, no mínimo, uma grotesca redundância; mas até aí, nada demais. Inquietante mesmo é constatar que, na rude e indisciplinada cabecinha presidencial, ter paciência com as ''verdades'' governamentais seria uma manifestação democrática. É justamente o contrário: cabe ao governo aceitar, democraticamente, a impaciência de quem o elegeu e, decorridos mais de dois anos, ainda não sentiu qualquer melhoramento em sua péssima qualidade de vida.

*Antonio Sepulveda escreve às quartas-feiras nesta página.