O Globo, n. 32022, 09/04/2021, Mundo, p. 24

 

Irlanda do Norte arde após mais de 20 anos

09/04/2021

 

 

Cenas de violência sectária que não eram vistas na Irlanda do Norte há mais de 20 anos foram registradas na noite de anteontem em Belfast, quando, ao longo de várias horas, jovens protestantes defensores da permanência da província no Reino Unido arremessaram coquetéis molotov contra policiais, incendiaram um ônibus e depredaram um muro que separa as comunidades protestante e católica.

Os distúrbios trouxeram à memória os conflitos entre os norte-irlandeses protestantes e os republicanos católicos que duraram mais de 30 anos e foram encerrados pelo Acordo da Sexta-Feira Santa, em1998, deixando um saldo de mais de 3.500 mortos.

Anoite marcou um acirramento significativo de confrontos ocorridos ao longo de todas as noites da última semana na província britânica. Neste período, mais de 50 policiais ficaram feridos, ônibus foram incendiados e ao menos 10 pessoas foram presas, incluindo adolescentes. A violência foi condenada por todos os principais partidos da Irlanda do Norte, assim como pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.

Os distúrbios podem ser atribuídos a diversos fatores, ma sem seu cerne está o descontentamento entre oslea listas—população protestante defensora da manutenção da Irlanda do Norte no Reino Unido, em oposição à unificação das Irlandas —com o acordo do Brexit firmado entre Londres e a União Europeia.

O Protocolo da Irlanda do Norte, documento anexo ao pacto de saída do Reino Unido da UE, manteve a província dentro do espaço mercantil do bloco. Isso significa que produtos enviados do Reino Unido para a Irlanda do Norte, e viceversa, precisam passar por procedimentos alfandegários.

O FERMENTO DA IRA

O expediente foi adotado para evitara imposição de uma nova fronteira que dividisse as Irlandas, oque violaria o Acordo da Sexta-Feira Santa, que restabeleceu a paz na ilha. A República da Irlanda é hoje o único território da UE com o qual o Reino Unido compartilha uma fronteira física. Qualquer habitante da ilha circula sem problemas entre os dois países, pois não há demarcação nem controle fronteiriço.

Os políticos lealistas —também chamados unionistas — se sentem traídos pela decisão de Londres, por entenderem que o Protocolo da Irlanda do Norte, que entrou em vigor em janeiro, enfraqueceu aposição do território dentro do Reino Unido. Eles afirmam que isso prejudica o comércio local, e manifestaram muitas vezes um sentimento de frustração e abandono.

A insatisfação se espalha há meses. Em janeiro, pichações contra o protocolo foram feitas em áreas unionistas. As verificações de produtos britânicos em portos em Larne e Belfast chegaram a ser suspensas, após supostas ameaças contra trabalhadores portuários feitas pelos unionistas. Em março, um grupo que incluía paramilitares leais a Londres escreveu a Boris Johnson pedindo a saída do acordo de 1998.

Um episódio específico foi o estopim para a eclosão das manifestações recentes. Promotores anunciaram que nenhuma ação seria tomada contra 24 políticos do Sinn Féin — partido que defende a unificação das Irlandas —por comparecerem ao funeral de Bobby Storey, histórico líder republicano irlandês e ex-membro do IRA (Exército Republicano Irlandês), que reuniu cerca de duas mil pessoas quando medidas de contenção da pandemia estavam em vigor em junho de 2020. O fato de os políticos não serem processados gerou denúncias de favorecimento judicial, em uma população desgastada por mais de um ano de pandemia.

Na noite de 29 de março, uma área unionista de Londonderryteve protestos envolvendo grupos de jovens, alguns de 12 ou 13 anos. Tumultos parecidos se repetiram quase toda noite em várias cidades, como Belfast, Carrickfergus, Ballymena e Newtownabbey. Nas manifestações, os jovens arremessam tijolos e coquetéis molotov e dispararam fogos de artifício contra policiais e veículos. A polícia acusa paramilitares unionistas de incentivara rebelião.

Na noite de quarta, o tumulto atingiu novo patamar e se converteu em um confronto sectário envolvendo o chamado muro da paz no Oeste de Belfast, que divide as comunidades unionistas e as comunidades nacionalistas predominantemente católicas. Um portão entre as duas foi arrombado, um ônibus foi incendiado, e policiais e um fotojornalista, atacados.

POSIÇÃO DÚBIA

Boris e o premier da Irlanda, Micheál Martin, condenaram a violência após uma reunião virtual, e o governo da Irlanda do Nortes e reuniu ontem para pedi rum“fim imediato e completo” aos distúrbios .“Amane irade resolveras diferenças é através do diálogo, não da violência ou da criminalidade”, disse o britânico em nota. O governo de Dublin afirmou que o “caminho a seguir é por meio do diálogo e do trabalho com as instituições do Acordo da Sexta-Feira Santa”.

Embora divididos, os principais partidos norte-irlandeses se uniram na condenação dos tumultos .“Estamos seriamente preocupados comas cenas que todos testemunhamos em nossas ruas”, disseram em comunicado conjunto, que incluiu nacionalistas católicos pró-Irlanda e unionistas protestantes pró-Londres. “Embora nossas posições políticas sejam muito diferentes em muitas questões, estamos todos unidos em nosso apoio à lei e à ordem, e declaramos coletivamente nosso apoio ao policiamento.”

A primeira-ministra da Irlanda do Norte, Arlene Foster, disse que não há espaço na sociedade para a violência, e que elementos criminosos tentam preencher “um vácuo” causado pelo fracassos dos políticos.

Foster, do partido unionista DUP, tem sido criticada por políticos republicanos, que a acusam de instigar a agitação por criticar ferozmente o protocolo assinado com a UE, e também por reiteradamente pedir a demissão do chefe do serviço de polícia, em retaliação à decisão de não processar os políticos do Sinn Féin que foram ao funeral de Bobby Storey.