O Globo, n. 32024, 11/04/2021, País, p. 12

 

Vale-transporte gerou propina a políticos no Rio

Chico Otavio

11/04/2021

 

 

Empresários de ônibus usaram sobras do vale-transporte, dinheiro pertencente aos passageiros, para pagar propina a autoridades fluminenses de 1989 a 2017. A caixinha chegou a desembolsar R$ 5 milhões mensais para remover as barreiras que atrapalhavam os lucros do setor. Estes detalhes fazem parte da colaboração premiada do expresidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio (Fetranspor) José Carlos Lavouras. Homologada há três meses pelo ministro Félix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a delação abre uma nova frente de investigações sobre o mais duradouro esquema de corrupção no Rio, segundo fontes com acesso ao conteúdo.

À frente da Fetranspor por 28 anos, Lavouras explicou que o objetivo da “caixinha da Fetranspor” era garantir atos como redução do IPVA para o setor, repasse das gratuidades às empresas, aumento sistemático de tarifas, repressão às vans e a não realização de licitação para os ônibus intermunicipais. Os efeitos das medidas, em sua maioria projetos de lei eliminares judiciais, acabavam sempre pesando no bolso dos passageiros. Lavouras, que tem dupla cidadania, vive em Portugal desde 2017, quando o juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio, decretou a sua prisão preventiva. Todo o processo de negociação da delação premiada foi feito por video conferência. É a segunda delação sobre a caixinha da Fetranspor. Na primeira, homologada no ano passado, o ex-executivo da federação Lelis Teixeira já havia denunciado autoridades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário envolvidas em propina.

“CONSELHINHO”

O empresário contou aos procuradores da então força-tarefa da Lava-Jato que um conselho informal da Fetranspor, o “conselhinho”, composto por ele e pelos empresários Jacob Barata, conhecido como “rei do ônibus”, Marcelo Traça e Narciso Gonçalves, decidia quem era merecedor dos pagamentos mensais. No final dos anos 1980, esse grupo, segundo o colaborador, deliberou pela criação de um caixa paralelo na entidade, alimentado pelas verbas de taxa de administração e sobras do valetransporte não utilizadas. As empresas que colaboravam coma caixinha recebiam, em troca, um valo ramais em vale-transporte. O dinheiro da propina, disse, era recolhido nas garagens das empresas por funcionários do doleiro Álvaro José Novis, também delator da Lava-Jato, que se encarregava de fazer a distribuição a autoridades e a agentes públicos. Pelo menos outras duas pessoas da entidade conheciam oes quem a:Le lis Teixeira, executivo da Fetransp ore também delator, e o advogado Enéas da Silva Bueno (ex-diretor Financeiro do Sindicato das Empresas de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro, a Rio-Ônibus). Dos cerca de 40 anexos, oito já fazem parte do processo instaurado contra Lavouras.

No anexo 24, ele conta que pagava propina a Cabral desde que ele assumiu a presidência da Assembleia Legislativa. Quando Cabral foi empossado no governo do estado, em 2007, passou a receber dos empresários de ônibus uma caixinha de R$ 420 mil mensais, pagos em espécie. Também ficou acertado um valor “por tarefa”. O empresário se recorda que, em março de 2014, quando estava deixando o governo, Cabral se reuniu com a cúpula da Fetranspor e, na conversa, foi feito um ajuste de contas sobre as propinas atrasadas, por conta dos atos praticados no último ano, e que o valor alcançado foi de R$ 79 milhões. O pagamento cessou com a prisão de Cabral.

No anexo 12, ele diz que, depois que Luiz Fernando Pezão assumiu o governo no mandato-tampão, também passou a receber uma mesada mensal de R$ 420 mil e quando assumiu em definitivo, a mesada subiu para R$ 1 milhão. A delação também fala em pagamento de mesadas para o então secretário estadual de Transportes, Júlio Lopes; e de propina para o ex-presidente da Alerj Jorge Picciani.

DEFESA: “ÚNICO PRESO”

Em nota, a defesa de Cabral disse que ele “é o único preso da operação Lava-Jato” e que “mais de 300 pessoas já foram para casa, mas inexplicavelmente ele permanece no cárcere”. O texto acrescenta que o ex-governador tem acordo de colaboração homologado pelo STF e já prestou esclarecimento sobre os fatos. A Fetranspor afirmou que a delação trata de fatos anteriores à posse da atual gestão, que “prioriza a transparência dos atos, a valorização dos controles internos e o respeito às normas que regulam o setor”.